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Indivíduo como figura pública

Redes sociais digitais e a transformação da privacidade e da intimidade

Júlia Ramalho-Pinto
Psicanalista e sócia-diretora da Estação do Saber
julia@estacaodosaber.art

Resumo
Nas redes sociais digitais o indivíduo comum se torna figura pública ao expor seus selfies e suas experiências. Busca-se o olhar do outro que é castrado do poder de provocar vergonha. As redes seduzem o indivíduo para a exposição de sua privacidade, transformando-a num espetáculo.

Palavras-chave: Redes sociais, psicanálise, privacidade e olhar.

Abstract
Average people become a public figure when their “selfies” and experiences are exposed in social networks. They seek for another gaze which has not the power to provoke shame. Networks seduce the individual to the exposure of their privacy, transforming it in a spectacle.
Keywords: Social network, psychoanalysis, privacy and gaze.

Cada vez mais a palavra “privacidade” vem ocupando espaço quando o assunto é internet e redes sociais. O caso de Edward Snowden levantou questões mundiais sobre a regulamentação da internet quando este denunciou práticas irregulares da Agência Nacional de Segurança dos EUA. Além disso, a discussão do Marco Civil da internet brasileira seguiu polêmica nas questões de privacidade até abril de 2014. Para além de questões jurídicas relativas a direitos e regulamentações da internet, este trabalho procurou avançar sobre as redes sociais e a transformação da intimidade.

Não há dúvida de que, progressivamente, estamos vendo a internet e as redes sociais se tornarem cada vez mais presentes na vida das pessoas. Acessos cada vez mais autônomos e constantes, por meio dos tablets e celulares. Mais que objetos, esses aparelhos vão se tornando uma extensão de nós mesmos. E, como nos alertaram Sherry Turkle e Amber Case, estamos nos tornando cyborgs ao nos mantermos cada vez mais ligados a estes gadgets: “Esta é a experiência de viver em tempo integral na rede, não muito livres em alguns aspectos, não muito atrelados em outros. Somos todos cyborgs agora” (Turkle, 2011). Mas, o que tanto fazemos nas redes sociais?

As redes sociais e a auto exposição do “Grande Eu”

Uma nova palavra inglesa, “selfie”, pode ilustrar o que tanto se faz nas mídias sociais. Trata-se de um neologismo com origem no termo self-portrait (auto retrato), uma foto tirada e compartilhada na internet e nas redes sociais. Os responsáveis pelos dicionários da Oxford escolheram “selfie” como a palavra do ano de 2013. Nas primeiras semanas de 2014 a palavra “braggie” surgiu significando postar uma foto nas redes sociais com o objetivo de provocar inveja nos amigos e seguidores. Mais do que viver suas férias, seu momento de descanso, o importante é compartilhar a imagem do momento, compartilhar a experiência.

Nessa mesma direção, a pesquisa realizada por etnográficos da UCL (University College London) apontou como as mídias sociais têm alterado nossa forma de viver offline. Foram pesquisadas várias cidades de países como Brasil, China, Índia, Itália, Trinidad, Turquia e Reino Unido.

A pesquisa constatou que há nas redes sociais muitas fotografias, as quais são extremamente orientadas para o Eu. Perguntadas sobre o motivo pelo qual postavam assim, as pessoas disseram que queriam se tornar populares. As fotos de comidas também foram consideradas como muito populares. A combinação de boa comida e boas pessoas foi considerada a melhor forma de impressionar o público e aumentar a popularidade, mais que reforçar os nós sociais com outros, concluiu os pesquisadores.

Tomamos, assim, dois aspectos identificados nas postagens: compartilhar a experiência e aumentar a popularidade. Mas o que isto revela? Seria a necessidade de ser visto? O olhar, então, se torna ponto crucial para se pensar as relações e a intimidade nas redes sociais. Que olhar está em jogo nesse cyberespaço?

O olhar nas redes sociais: a armadilha da sedução e da visibilidade.

Em “Máquinas de ver e modos de ser”, Fernanda Bruno (2013) nos apresenta o olhar da vigilância distribuída como presente nas redes sociais. Não se trata de Panóptico (onde um olha e vigia muitos), nem de sinóptico (onde muitos vigiam poucos). Trata-se de um modelo reticular e distribuído onde muitos vigiam muitos ou onde muitos veem e são vistos de variadas formas.

Assim, não é a vertente disciplinar de controle que prevalece nas redes sociais, mas sim a docilidade e a sedução. As redes colocam em foco a visibilidade sobre o indivíduo comum, provocando um embaralhamento nas fronteiras entre vigilância e espetáculo, entre público e privado.

As redes sociais surgiram como um espaço limítrofe entre o público e o privado, onde a velocidade da troca de informações é muito grande e maior ainda é a velocidade que elas chegam ao destinatário (JOHSON, 2010). Nelas, a vida pessoal se torna fator importante para se estabelecer conexões. Vemos surgir uma curiosa aposta de que a tecnologia possa ser capaz de engendrar a intimidade. Se estamos postando sobre nossa intimidade estaríamos criando intimidade? Turkle (2011) acredita que quando a tecnologia engedra intimidade, os relacionamentos podem ser reduzidos a meras conexões. Neste sentido, essas conexões fáceis são redefinidas como intimidade, mas o que vemos é a cyber intimidade deslizar para a cyber solidão.

Não é porque expomos nossa vida pessoal nas redes digitais que estabelecemos laços afetivos e complexos como a amizade. Ao contrário, vemos surgir um paradoxo: enquanto expomos nossa intimidade nos ambientes das redes sociais não estamos criando mais intimidade, e sim construindo um público.

O termo cunhado por Debord “a sociedade do espetáculo” se torna cada vez mais próprio para descrever o ambiente das redes sociais. Ali, o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, isto é, passamos a ser mediatizados por imagens que buscam popularidade e aprovação.

Vemos surgir a “intimidade como espetáculo” termo usado por Sibilia (2009) para denominar a privacidade através das redes sociais, dos blogs e dos reality shows. As pessoas espontaneamente evadem sua privacidade movidas pela necessidade de obter destaque e reconhecimento. A vida privada se oferece sem pudor diante dos olhares sedentos de todos aqueles que desejarem dar “uma olhada”. Essa exposição deliberada do eu, da intimidade, da vida banal e quotidiana nas redes sociais se tornam vetores de prazer, entretenimento e sociabilidade.

O que se procura nessas novas práticas “exibicionistas” e “confessionais” não é a busca das próprias verdades, como acontecia na escrita do diário íntimo tradicional ou no relato vital da psicanálise, por exemplo. Agora se persegue a visibilidade e a celebridade, ambas como fins em si mesmas. É preciso o olhar do outro para que a pessoa se reconheça como “alguém” na sociedade atual. Ou, de outra forma, o homem comum é transformado em figura pública e esta se sustenta através de seus fãs. Nesse jogo de se dar a ver e de buscar reconhecimento há um olhar castrado do poder de provocar vergonha. Ao fazer as postagens o indivíduo controla como ele quer ser visto e tenta através de escolhas intencionais das postagens prever o que pode agradar ao seu público.

Para Lacan a transformação da intimidade na sociedade contemporânea se dá a partir deste ponto: o olhar como castrado do poder de causar vergonha altera a relação de sujeito e gozo. Em “O Avesso da Psicanálise” ele formula que a vergonha é um afeto primário da relação com o Outro. Isto é, a vergonha tem relação com um Outro anterior ao Outro que julga, um Outro primordial que não julga, apenas vê ou dá a ver.

Lacan retoma a Sartre para exemplificar como o olhar era causador de vergonha. No exemplo do sujeito olhando pelo buraco da fechadura, descrita em dois momentos, era possível se “morrer de vergonha” ao ser visto vendo.

No primeiro momento – “estou olhando pelo buraco da fechadura”–onde o sujeito é puro espectador, absorvido pelo espetáculo “olhando pelo buraco da fechadura, eu não sou nada”. No segundo momento: “escuto passos no corredor: tem gente me olhando. E então sou tomado pela vergonha”. Este momento, conectado ao som, faz surgir o olhar. O espectador, antes de ver que está sendo visto, formula para si: “tem gente me olhando”. “Um olhar anônimo, por trás desse ‘gente’ esconde-se a álgebra lacaniana, o olhar do Outro.” Ai se instala a vergonha: “Reconheço que sou esse objeto que o Outro olha e julga. “Eu sou esse ser-em-si.” Hoje em dia o sujeito reconhece a existência do olhar do outro nas redes sociais, mas se reconhece como objeto?

Lacan formula que o gozo e seus objetos dizem do mais íntimo do sujeito. Assim, a relação do gozo na teoria Lacaniana e os “objetos pequeno a” se torna fundamental para o tema da intimidade nas redes sociais.

Em “A teoria dos gozos em Lacan”, Souza Leite destaca que antes do Seminário 20 os conceitos de gozo em Lacan eram articulados e adjetivados a partir do gozo do Outro. Neste sentido, eram inspirações e não precisões clínicas. Miller afirma que é a partir do seminário 20 que Lacan faz a demonstração de que o gozo é, fundamentalmente, Uno, quer dizer, que ele se abstém do Outro. Mesmo complexa a teoria dos gozos, podemos tomar o conceito a partir da satisfação da pulsão, um critério quase universalmente aceito, e o mais utilizado.

Se o gozo diz da pulsão do sujeito e é algo íntimo, como isto interage com o que é social? Até 1960, o capitalismo estava alinhado com o puritanismo, havendo uma repressão do gozo. A sociedade contemporânea é marcada por um discurso capitalista que se alia a uma “liberação do gozo”, como ressaltou Miller em “Uma Fantasia”. O que marca a sociedade de hoje é uma certa permissividade, uma dificuldade de se proibir; mais do que isso, contata-se que há um “Grande Eu” que imperativamente nos manda gozar. A condição capitalista da sociedade atual aponta que o sujeito procura sua completude não mais no sentido, mas no objeto.

E isto se complexifica a partir da diferenciação do gozo como pequeno a da pulsão e o gozo como mais-gozar. Segundo Miller quando o gozo é apresentado como o objeto pequeno a da pulsão, ele é listado, a partir das pulsões estabelecidas por Freud e ordenadas por Lacan: o objeto oral, o objeto anal, o objeto escópico, o objeto vocal. Mas quando se pensa no gozo como mais-gozar, se diz aquilo que preenche, sem jamais preencher exatamente. Há sempre um desperdício de gozo que, mesmo promovendo o gozar, mantém a falta-de-gozar. Aqui, então, a lista dos objetos pequeno a se estende e se amplifica. E todos objetos da sublimação estão incluídos na lista dos objetos pequeno a, sem contudo, conseguir fazê-lo de maneira exaustiva (deixando seu resto de gozo).

Na sociedade contemporânea esses “objetos pequeno a” pululam e causam nosso desejo, tamponando a falta de gozo, por apenas um instante. Se somos seres de pulsão e a pulsão não se satisfaz toda, tudo o que nos é permitido gozar, e o é por pedacinhos. É isto que, segundo Miller, Lacan chama de ‘bocadinho’ do gozo”. Vemos, então, nosso mundo cultural se inundar dos substitutos do gozo que são os nadicas de nada. São esses bocadinhos do gozo que conferem seu estilo próprio ao nosso modo de vida e ao nosso modo-de-gozar.

Nas redes sociais o sujeito se dá a ver, se exibe, se mostra, e de nada se preserva, de nada se envergonha. Ele não se reconhece como este objeto que o outro vê. Inclusive, se sente senhor de si ao postar e também expressar seu olhar através de suas “curtidas”. Há ai um ‘olhem ele gozando’ que convoca o olhar. Mas se é preciso convocar o olhar, como diz Miller, isto é porque o Outro que poderia olhar se dissipara. Assim, o Outro retorna para olhar e ao mesmo tempo gozar criando um: “olhem eles gozando, para gozarem disso”. Nessa teia de visibilidade, enquanto todos gozam todos se tornam objetos de gozo.

O imperativo de gozo que outrora era “goze!”, agora impera no “me veja gozando”. Vemos surgir nas redes sociais um deslocamento do gozo dos objetos de consumo (mais-gozar) para a experiência mesma. Ou seja, mais importante que jantar é compartilhar a foto do irá se comer, assim, ao fazê-lo, o sujeito e sua experiência se tornam o objeto de gozo do outro que vê.

A busca pela popularidade transforma a necessidade de se expor a intimidade nessa liberdade de se espontaneamente alienar. Mas, talvez não se perceba que a vida privada exposta vai deixando de ser um direito a singularidade. Orientado pela “torcida” e público o sujeito molda sua vida nos padrões da visibilidade que é expressa nas cifras de reconhecimento.

Vemos surgir, assim, o “datasexuel” – aqueles preocupados com suas postagens e com seu poder de sedução através das cifras de reconhecimento. Vemos os dados passarem a ter um sex appeal, conforme afirmado no artigo Facebook, Twitter… la dictature de l’ego.

O gozo como o mais íntimo do sujeito, faz com que, ao mesmo tempo, que o sujeito goze através das redes sociais ele inclua o Outro através do olhar. Assim, faz parecer que seu gozo não é idiota, solitário. Mas, a inclusão deste outro que me toma como objeto e que eu o tomo como objeto não seria assim um gozo idiota? Seria o gozo do UM? Isto significaria que o gozo não está mais no Outro?

Assim, a visibilidade nas redes sociais gera uma armadilha para o indivíduo comum ao seduzí-lo a expor sua intimidade. Primeiro, porque a privacidade exposta nestas redes sociais paradoxalmente não gera intimidade, mas gera público, uma massa de fãs e não sujeitos que de fato reconhecem sua alteridade. Segundo, porque a exposição da vida privada gera cifras de reconhecimento que gera um curto circuito pulsional ao se buscar cada vez mais necessidade de aprovação. Terceiro, por que é aumentando o controle sobre o indivíduo, um controle dócil, onde todos vão espontaneamente evadindo sua privacidade.

Referencias Bibliográficas

BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013.
CASE, Amber. We are all cyborgs. In: Ted talk. Video. TED.com (2010). Disponível em: https://www.ted.com/talks/amber_case_we_are_all_Cyborgs_now. Acesso em janeiro 2011.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
JOHNSON, S. A cidade como organismo vivo. Conferencia Internacional de Cidades Inovadoras (CICI2010). Curitiba, 10-13 de março 2010.
LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, J. Seminário 17: Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
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MILLER, Jaques Alain. Sobre honra e vergonha. In: Ornicar? De Jaques Lacan a Lewis Carroll. RJ: Zahar Ed., 2004.
MILLER, Jaques Alain. Os seis paradigmas do gozo. In:< https://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf> Acesso em dezembro 2013.
MILLER, Jaques Alain. Uma Fantasia. In: RJ: Zahar Ed., 2004.
MILLER, Daniel. Pesquisa UCL : Disponível em: Acesso em dezembro 2013.
SOUZA LEITE, Mácio Peter. A TEORIA DOS GOZOS EM LACAN [online] Disponível na internet via WWW URL: https://www.educacaoonline.pro.br/a_teoria_dos_gozos.asp
SIBILIA, Paula. In: Mente e Cérebro, 2009. https://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/o_espetaculo_do_eu.html
TURKLE, Sherry. Alone Together- why we expect more from technology and less from each other. NY: Basic Books, 2011.
WILLIAMNS, Patrick. Facebook, Twitter… la dictature de l’ego. IN: Marianne, 27/10/2013. https://www.marianne.net/Facebook-Twitter-la-dictature-de-l-ego_a233142.html

 

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