As várias dimensões da crise brasileira
A crise viral mostrou de maneira cristalina que algumas concepções de sociedade e certos conceitos que vinham sendo defendidos pelos neoliberais estão fracassados
Paulo Roberto Bretas
Economista e professor de história econômica
A crise brasileira tem várias camadas e dimensões. Ela se reflete de maneira diferente em cada grupo de cidadãos, dependendo de sua condição social, consciência da realidade vivida, convicção politica e de suas preocupações com seu dia a dia. A crise é, portanto, grave para todos e pior para os mais pobres; para os mais velhos; para os desempregados e trabalhadores informai; para os indígenas e quilombolas; para as mulheres; para os doentes crônicos; para os funcionários públicos e para os micros e pequenos empresários; para citar alguns casos específicos.
Temos uma crise que se manifesta em dois eixos fundamentais: no primeiro eixo temos uma Pandemia gerando uma crise de saúde, produzida por um vírus da família dos Corona vírus, que coloca em risco a vida das pessoas em escala acelerada e amplitude mundial. Uma rapidez de transmissão e contágio nunca vista e uma aceleração de óbitos surpreendente, exaurindo as energias de médicos, enfermeiros e demais profissionais e sistemas de saúde. A doença parece que vai se reduzir após um período de tempo, mas em seguida vem uma segunda onda, como é o caso da Europa.
O segundo eixo é o Econômico, relacionado com o primeiro eixo, decorre da paralização de atividades e da produção de choques de oferta e de demanda, acompanhada de desemprego e aumento da pobreza. A interrupção da circulação de pessoas e de mercadorias, decorrente da parada produtiva, a queda da renda e o desemprego, tudo comunga para agravar uma situação que já era difícil, especialmente no caso brasileiro. Já com a liberalização das atividades, a economia começa a reagir com força, os empregos vão voltando, mas ainda falta muito para recuperarmos os níveis e indicadores anteriores à crise em todos os setores. Na verdade a reativação da economia produz novos desafios como a aceleração da inflação devido às pressões de custo e ao aumento da demanda por bens assalariados. Inflação que se agrava com o desabastecimento e com a subida do dólar.
A crise viral mostrou de maneira cristalina que algumas concepções de sociedade e certos conceitos que vinham sendo defendidos pelos neoliberais estão fracassados. O vírus mostrou que a sociedade quando entregue à livre força do mercado, não consegue sobreviver. O mercado envolto numa crise pandêmica desta dimensão é como uma criança perdida querendo atravessar uma avenida de muito movimento. Problemas que a mão-invisível de Adam Smith não consegue resolver dentro dos limites egoístas de cada agente econômico em competição.
A crise virótica mostrou até que a natureza é capaz de melhorar suas condições de existência quando é reduzida a interferência do homem. As cidades estão menos poluídas, as águas do mar estão mais limpas, os animais voltaram a circular em ambientes antes tomados pela ação dos homens. Exceto onde as pessoas irresponsáveis tocam fogo, talvez estimulados pela negligência ambiental claramente demonstrada por algumas lideranças políticas do país. Só o Pantanal já perdeu cerca de um quarto de seu bioma.
SUS – papel estratégico
A crise demonstrou que o SUS – Sistema Único de Saúde, patrimônio estatal brasileiro, é uma conquista de todos e a única garantia de se conseguir organizar a sociedade em torno do combate à pandemia. O sistema, cuja abrangência é única no mundo, atende a todos de maneira ampla e democrática. Um sistema que se for destruído, ou minimizado, colocará em risco a vida no país. E sabemos que saúde é direito constitucional e em casos de crise profunda, não há sistema privado que seja capaz de dar conta do recado. Sem contar que sistemas privados já selecionam por si só a qualidade de seu atendimento pelo padrão de renda.
Falando ainda do Eixo da Pandemia, o vírus nos mostra como é triste a perda de entes queridos fora da hora, isso porque sem a pandemia talvez vivessem mais alguns anos. Nem sequer podemos velá-los ou enterrá-los. O fim desta história depende de vacinas que não existem e remédios para o tratamento que ainda não foram descobertos.
A pandemia mostra, também, que fomos negligentes com os investimentos públicos, a sociedade deixou-se levar pelos discursos fiscalistas que só faziam pregar cortes de gastos e ajustes nas contas públicas. Narrativas que nos amedrontam com o crescimento da relação dívida/PIB, como se fosse impossível para um país como o Brasil não arcar com a rolagem desses compromissos no futuro, mesmo com juros candentes e reservas internacionais da ordem de 340 bilhões de dólares.
Temos uma equipe econômica que reza religiosamente na cartilha do teto de gastos, dos cortes de despesas e da redução de investimentos. Tudo voltado para o “deus equilíbrio fiscal”. A Reforma da Previdência que era a mãe de todas as reformas e que abriria espaço para a solução da maioria dos problemas fiscais contribuiu muito pouco, mesmo antes da pandemia.
Enquanto o mercado aplaudia a tal política de restrição de gastos, o vírus mostrou a existência de brasileiros e de brasileiras sem acesso à água potável e encanada, sem emprego, sem futuro e com baixa renda. Mostrou os milhões de trabalhadores informais e os muitos que ainda não eram beneficiados pela assistência social do Estado. Mostrou um Brasil real, submerso, escondido atrás das estatísticas de pobreza e desigualdade.
A covid 19 mostra também as consequências da falta de esgoto e da coleta de lixo, vetores de muitas doenças que só trazem o agravamento da situação. A pandemia faz a sociedade refletir sobre a impossibilidade de seguir políticas de isolamento quando se é pobre e se tem que viver em casebres apertados, onde moram várias pessoas de todas as idades, apertadas em cubículos miseráveis. O vírus denuncia a falta de investimentos públicos para os mais vulneráveis. O vírus denuncia a falta de interferência inteligente do Estado.
O vírus grita que estamos vivendo numa sociedade desigual e injusta, onde sobra para poucos e falta para muitos miseráveis. Como não ir para as ruas enfrentando doenças e a violência cotidiana se é preciso levar algum dinheiro para casa? Pobre tem condições de fazer isolamento sem um projeto descente de renda mínima? A grande maioria da população se sente, muitas vezes, abandonada pelos políticos e autoridades.
E quanto mais se corta gastos, e quanto mais os investimentos se reduzem, mais a economia entra no buraco, mais a arrecadação de impostos cairá e mais o déficit fiscal aumentará. Os problemas aumentam, pela falta de receita e ausência de dinamismo econômico. Pela falta de incentivo aos investimentos privados, que caminham sempre juntos com os investimentos públicos. O empresário precisa ter a certeza da possibilidade de fazer o cálculo econômico e enxergar um mercado para vender e lucrar. Inicie-se um grande programa de obras públicas para ver se a economia não deslancha.
No final de março o Banco Central liberou algo em torno de 1,2 trilhão de reais para irrigar os bancos. A cifra equivale a 16,7% do Produto Interno Bruto. Enquanto o Ministério da Economia fazia cara feia e desaprovava um tímido plano de 30 bilhões de reais, articulado pela Casa Civil da Presidência, para retomada de obras paradas.
A doença neoliberal, estágio infantil da economia brasileira, vem trazendo danos, desde meados de 2014. A recessão produzida nos levou a um recuo de algo em torno de 7% do PIB, de 2015 (-3,8%) a 2016 (-3,3%); e nos fez andar de lado em 2017, 2018 e 2019, com pífios crescimentos em torno de 1,1%, em cada ano. Então não é de agora que o desemprego está elevado, cerca de 12 milhões de brasileiros estavam fora do mercado de trabalho desde 2018, em outubro já são 14 milhões e muitos mais perderão seus empregos.
A economia brasileira em crise vai envolvendo a sociedade numa falsa dicotomia entre salvar a saúde que trás a vida, ou salvar a economia que trás a possibilidade de seguir vivendo. Falso porque sem saúde não há como qualquer pessoa trabalhar.
Para evitar que o sistema de saúde entrasse em colapso pelo excesso de demanda, num mesmo momento, com muita gente doente chegando aos hospitais, ao mesmo tempo, foi preciso seguir em isolamento social. E se houver uma segunda onda de contágio da covid nos assolar, novamente será recomendado o isolamento social. Até que se demonstre que a doença esteja arrefecida, com queda na velocidade de contágio, redução dos doentes e das mortes. Saber este momento depende de muitas coisas, inclusive da testagem em massa da população e de estatísticas confiáveis.
Com isolamento social é possível impedir que os sistemas público e privado de saúde entrem em colapso, mas ao mesmo tempo trava o funcionamento pleno da economia, com a paralização da circulação das pessoas e de dinheiro. Paralisa as fábricas e mantém o comércio fechado, mantendo-se apenas as atividades essenciais. Impossibilita a prestação de serviços em condições desejáveis. Tudo passa a funcionar em módulo lento, produzindo-se uma crise econômica de choque de oferta (redução dos bens e serviços oferecidos à sociedade) e de demanda (forte redução do consumo e dos gastos das famílias). Em 2020 o PIB brasileiro será de aproximadamente 5,0% negativo.
A recomendação dos economistas no mundo inteiro é uma só salvar vidas e salvar os agentes econômicos. Como? O Estado deve interferir injetando dinheiro seja para as pessoas gastarem, seja oferecendo liquidez para que não falte crédito, seja apoiando as populações mais carentes, seja apoiando a redução de jornadas de trabalho.
Sem apoio e sem crédito, sem planos concretos de retomada da economia, as empresas seguirão tendo dificuldades de caixa, dificuldades de seguir investindo e produzindo, dificuldades de pagar seus compromissos, dificuldades de planejar seu futuro e correr riscos. Muitas encerraram suas atividades, porque há problemas na forma e na quantidade que o auxílio foi disponibilizado. Porque já vinham enfrentando problemas e tudo se tornou mais difícil, mesmo que no momento os indicadores mostrem uma retomada do crescimento.
Tendências
Mesmo que as atividades econômicas estejam se recuperando aos poucos, nada será como antes e a chamada normalidade será outra. Especialistas dizem que dos que forem demitidos voltarão apenas 80% no curto prazo. Os varejistas irão reabrir suas lojas físicas muito mais no formato de “showrooms”, porque seu forte passará a ser as vendas “on line” – a força estará no “e-commerce”. Bares e restaurantes terão seu layout adequado para menos mesas e mais distância entre os clientes.
Também as escolas de nível superior estarão se voltando para o ensino híbrido, com forte elemento on-line e alguns encontros presenciais. Os estudantes estão reaprendendo a estudar e os professores reaprendendo a lecionar.
Mesmo com a reabertura de pontos comerciais e das fábricas os problemas de abastecimento em decorrência de falhas nas cadeias produtivas nacionais e internacionais estão aparecendo. A crise nos mostrou como não temos segurança de abastecimento e como nos tornamos dependentes de matérias primas, suprimentos em geral e produtos finais importados, principalmente da China. Enquanto isto nosso parque industrial virá sucata e o Brasil se desindustrializa rapidamente. Nem mesmo máscaras e demais EPIs – equipamentos de proteção individual, conseguimos produzir em solo nacional.
Também é bom lembrar que enquanto setores como hotéis, bares e restaurantes, companhias aéreas e setores de atividades turísticas terão muitos problemas para se recuperar da crise, outros setores como supermercados, farmácias, indústria farmacêutica, indústria de produtos de limpeza, serviços de entrega e setor financeiro, seguirão muito bem. O importante é que cada um de nós saiba se reinventar e saiba ficar atento às informações verdadeiras para não sermos passados para trás. Para conseguirmos suplantar as animosidades.
O que surge é uma imensa oportunidade para pensarmos nas saídas para a crise com mais investimentos do Estado, contemplando um plano de médio e longo prazo para colocarmos a economia em crescimento sustentável. Recuperar o papel do planejamento econômico, quem sabe aprender com as economias do Leste da Ásia. Nunca uma reforma fiscal que reduza o peso dos impostos indiretos e faça simplificações foi tão importante.
Por último tenho observado as crescentes crises políticas da sociedade brasileira, que nada ajudam na recuperação da saúde, muito menos da economia. Crises produzidas entre ministros e crises que são consequência de um poder executivo, que em seu estilo de governar, produz o caos, porque cresce na desordem. Até quando?
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