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O futuro do ensino do direito

Dúvidas, desafios e o breve relato de uma experiência

Estamos nos aproximando do antes longínquo ano de 2020. O Século XX agora pertence aos livros de história, acompanhado de muitas das ideias, certezas, práticas e instituições que, há 20 ou 30 anos, pareciam imutáveis. No campo jurídico, percebem-se mudanças substanciais, como a judicialização da Política, a politização do Direito, um enorme e eficaz incremento no combate à corrupção, a sedimentação das técnicas alternativas de resolução de conflitos, a consagração da jurisdição constitucional, dentre tantas outras. Especificamente quanto aos desafios na prática cotidiana do Direito, relembrem-se o processo eletrônico, a massificação das relações jurídicas, a facilidade no acesso à informação, a linguagem menos rebuscada, a revolução da brevidade, a interdisciplinaridade, a velocidade das alterações normativas e jurisprudenciais e a atuação colaborativa e orientada ao consenso.

Não são pequenas as mudanças. Aqueles que, como eu, frequentaram os Cursos de Direito na década de 90 do Século passado, já não reconhecem aquilo que estudaram e aprenderam nos quatro ou cinco anos que passaram na Faculdade. A realidade é outra. O conteúdo é diferente. Exigem-se novas habilidades do profissional jurídico, que lida com desafios impensáveis há bem pouco tempo.

É inegável, nesse contexto, que os Bacharéis de hoje encaram questões distintas e mais complexas do que aquelas enfrentadas pelos recém-formados de alguns anos atrás. A vida profissional desses jovens não será nada fácil. O conhecimento adquirido na Faculdade deve ser suficiente para um ou dois anos de atividades profissional, e olhe lá. Títulos de pós-graduação, mestrado e doutorado tornam-se cada dia mais exigidos, especialmente para aqueles que sonham com a vida acadêmica. Não saber uma língua estrangeira, especialmente o inglês, já é quase inaceitável para alguém que almeje sucesso. Um mercado privado ultracompetitivo espera pelos novos formados. O exame da OAB não será moleza. O sonho dourado da aprovação em um concurso público, em tempos de crise fiscal, menos oportunidades e grande concorrência, mostra-se um desafio heroico.

Diante desse quadro, um leitor mais atento já fará as inevitáveis perguntas: e as Faculdades de Direito, como estão preparando esses estudantes, em sua maioria jovens na casa dos vinte e poucos anos, para desafios profissionais tão intensos? Será que o nosso modelo de ensino jurídico atende a essa importante missão? Como as nossas Instituições de Ensino Superior estão se atualizando e oferendo uma preparação adequada e moderna para os seus estudantes?

São indagações importantes e muito necessárias. Contudo, em vez de ficar tentando refletir em demasia a respeito dessas perguntas, permanecer na inércia absoluta, adotar um tom pessimista ou, então, oferecer explicações puramente teóricas, vamos relatar um pouco da experiência por que passamos na Escola de Direito de Brasília – EDB/IDP recentemente. Essa breve exposição talvez ajude o leitor a compreender parte dos desafios que se apresentam para o ensino jurídico brasileiro, algumas tendências importantes que já podem ser constatadas e, por fim, as soluções que, acertadamente ou não, estamos tentando implementar na nossa Faculdade. Ao final, espero que possamos ter aprofundado a discussão sem, pretensiosamente, oferecer um manual recheado de ideias e propostas inovadoras e infalíveis.

Ao longo de 2016, instituímos uma Comissão de Modernização do Curso de Direito, que, composta por três professores, ficou responsável pela avaliação da nossa graduação, com a sugestão de eventuais mudanças tendentes a atualizar o curso em todos os aspectos que se entendesse necessário. Esse Colegiado promoveu as reuniões pertinentes, dialogando com os alunos, professores, colaboradores e direção da instituição. Houve conversas e reuniões com especialistas externos e bate papos informais com integrantes de outras faculdades que passaram por um processo semelhante. Também foi realizado um ciclo de debates ao longo de três dias na Escola. O grupo de participantes foi composto por convidados externos (pesquisadores, professores, advogados, representantes de ONGs, autoridades públicas, dentre outros), que deram a sua contribuição sobre os desafios atuais do ensino jurídico e os caminhos que devem ser trilhados para a oferta de um ambiente acadêmico moderno, vibrante e qualificado.

Após a conclusão dos trabalhos, a Comissão de Modernização apresentou o relatório de suas atividades à Direção Acadêmica da EBD/IDP que, imediatamente, em conjunto com a Coordenação do Curso de Direito, começou a implementar as medidas necessárias a partir dos diagnósticos que recebeu. O que segue abaixo é um breve relato dessas conclusões alcançadas no âmbito da Comissão e das medidas que foram adotadas até aqui, com a missão de conferir-se ao ensino oferecido na nossa Faculdade uma roupagem moderna e condizente, ainda que em mínima medida, com os desafios que serão enfrentados pelos nossos alunos quando deixarem a instituição.

Em primeiro lugar, concluiu-se o óbvio. O ensino jurídico, seja na sua perspectiva estritamente metodológica, seja, ainda, quanto ao conteúdo oferecido aos alunos, precisa ser revisto. Contrariamente às aulas totalmente expositivas, a participação do aluno precisa ser incentivada, tanto no que se refere ao diálogo com o professor, quanto no que tange à sua interação com os colegas. O aluno deve fazer parte do processo de aprendizado de forma ativa, com uma necessária modificação na apreensão do conteúdo e no método de avaliação dos discentes. Além disso, mais importante que o conteúdo assimilado, é o desenvolvimento de novas habilidades pelo aluno. Talentos de natureza crítica, comunicativa e analítica devem ser incentivados. A criatividade do aluno deve ser potencializada. A capacidade de interação (networking skills) com seus próprios colegas, com os professores e com representantes acadêmicos de outras áreas deve ser desenvolvida. Aliás, um trabalho de pesquisa realizado já na década de 70 pelo economista americano James Heckman, ganhador do prêmio Nobel de Economia, mostrava essa realidade. O desenvolvimento de uma personalidade curiosa, capaz de trabalhar em grupo e com habilidades organizacionais é muito mais importante do que a matéria efetivamente oferecida aos estudantes. Ou seja, cuida-se do desenvolvimento de talentos totalmente diversos, mais complexos e duradouros do que a simples memorização de um vasto conteúdo.

Nesse contexto, como segundo diagnóstico, vem a necessidade de empoderamento do aluno na escolha de seu percurso formativo. Vive-se em um mundo de verticalização do conhecimento. Os aspectos teóricos aprendidos na Faculdade duram pouquíssimos anos e pedem rápida atualização. A ideia de uma abordagem horizontal, ampla e genérica, numa infrutífera tentativa de ensinar aos alunos um pouco de cada área do Direito, mostra-se ultrapassada. Se o objetivo é o desenvolvimento de habilidades específicas, a matéria ensinada, ainda que importante, perde a relevância de antes. Além disso, o processo de amadurecimento pessoal, acadêmico e profissional do estudante reclama um certo distanciamento do corpo docente e da Direção da Faculdade no processo de formação do aluno, especificamente no que se refere aos conteúdos que serão a ele ensinados. A independência, maturidade, capacidade de escolha, responsabilidade pessoal, proatividade e outras qualidades tão necessárias em um profissional moderno demandam que o estudante seja, em alguma medida, livre e responsável pela escolha de seu caminho, com a necessária orientação dos professores e da Direção da Escola. Impõe-se, também, a observância de um período inicial de adaptação e fluência, no qual a tutela docente mostra-se imprescindível. Em síntese: a partir de um certo ponto, mais disciplinas optativas, menos obrigatórias.

Ainda como desdobramento desse novo processo metodológico, em terceiro lugar, surge a interdisciplinaridade. Um profissional verdadeiramente moderno e preparado para lidar com a realidade de um mercado extremamente competitivo e complexo deve ter habilidades interdisciplinares. As diversas áreas do conhecimento se interelacionam e dessa relação específica emerge um conteúdo completamente novo. É preciso estar preparado para isso. Aqui, uma vez mais, vale muito o desenvolvimento de uma habilidade especial, consistente na compreensão da dinâmica e do diálogo entre setores tão específicos, como Direito, Psicologia, Filosofia, Economia e Sociologia, entre outros. Não se trata apenas de ensinar essas matérias na Faculdade. Cuida-se de mostrar a sua interação e desenvolver a capacidade de permanente conjugação entre tais disciplinas. O sistema de conhecimento que deve ser apreendido pelo aluno é integrado por variadas áreas extremamente fluidas, sem que se saiba exatamente as fronteiras que as separam. Além disso, a própria interação entre as diversas áreas do Direito deve ser compreendida pelo aluno nessa mesma perspectiva.

Uma quarta conclusão que se alcançou consiste na necessidade de maior integração entre os discentes. Não se cuida, apenas, de promover-se a coesão das turmas ou de realizarem-se seminários e eventos no âmbito da instituição. Essas são práticas relevantes, mas o objetivo em si demanda uma abordagem mais ousada, no sentido de permitir que alunos de semestres diferentes e, por evidente, com graus de amadurecimento pessoal e acadêmico distintos, possam interagir dentro de sala de aula. Se o escopo maior é o desenvolvimento de habilidades, muitas delas de caráter interpessoal, é legítima essa interação, especialmente porque o grau de assimilação dessas habilidades é diferente em cada aluno, não podendo, de forma geral, ser categorizada na clássica figura do semestre letivo. Um estudante do oitavo semestre pode ter muito a aprender, por exemplo, com um colega do terceiro, observadas, por evidente, certas cautelas no exame da progressão do aprendizado de cada um deles.

A internacionalização da Faculdade, e por consequência de seus alunos, é outro desafio. Não é necessário qualquer comentário a respeito das repercussões que a globalização trouxe para as atividades profissionais em geral, e para o Direito em particular. Oferecer aos seus estudantes uma experiência mais global, mais rica, é uma missão e uma clara obrigação da Faculdade. Significa lançar um olhar para além das fronteiras do País e do Direito nacional. Representa um ensino diferente, verdadeiramente internacional e menos autocentrado. A vinda de palestrantes estrangeiros é fundamental. A interação com instituições do exterior é muito relevante. Períodos de estudo fora do País são recomendáveis para os nossos alunos. Disciplinas e trabalhos de conclusão em língua estrangeira devem ser algo natural, legítimo e incentivado.

Embora o conteúdo oferecido aos alunos deixe de ser a única preocupação da Faculdade, ele ainda é um dos aspectos centrais da pesquisa e do ensino existentes no âmbito da instituição. É preciso, nesse sentido, rever os temas abordados. Disciplinas tradicionais talvez já não sejam mais absolutamente obrigatórias. Vive-se o mundo jurídico da responsabilidade civil exacerbada, da defesa do consumidor, dos crimes econômicos, da proteção ao meio ambiente, da judicialização da Política, da politização do Direito, do compliance, das formas alternativas de resolução de conflitos, da concorrência internacional, dentre outros temas muito interessantes, novos e seguidamente desprestigiados nos currículos acadêmicos. É preciso sabedoria para reconhecer que determinadas matérias, por mais importantes que ainda sejam, perderam o seu anterior protagonismo. É necessário, sobretudo, coragem para implementar as medidas e substituições necessárias em prol de um conteúdo mais moderno e condizente com a prática jurídica atual.

Finalmente, a responsabilidade social. A formação do aluno deve ser necessariamente a formação do ser humano e do cidadão. Não se trata apenas de entregar ao mundo bons profissionais, mas pessoas melhores, cientes de seu papel social e da necessidade de devolver à comunidade parte dos que lhes foi dado. Esse deve ser um compromisso fundamental das faculdades de direito, talvez o maior de todos. Uma vez mais, essa específica formação está associada ao desenvolvimento de habilidades especiais, treinando-se profissionais emocionalmente inteligentes, cognitivamente preparados e socialmente conscientes. Incutir nos alunos uma formação ética e responsável é uma tarefa diária. Nasce na sala de aula, passa pelas avaliações, cresce nas relações entre os variados atores da instituição e amadurece nos projetos desenvolvidos pela escola. É mais que uma missão. É uma cultura organizacional, prestigiada obsessivamente pela sua direção, seus colaboradores e professores.

A respeito dessa temática em torno da responsabilidade social, assume especial relevância a prática jurídica. É preciso prestigiá-la e desenvolvê-la, não apenas como método de aprendizado. O estudante precisa compreender a importância de seu papel social, independentemente do caminho que venha a escolher. A prática moderna envolve uma efetiva outorga de autonomia ao aluno, caracterizando-se pela entrega do problema a ele, que fica responsável pela sua solução. Essa metodologia traduz-se necessariamente no rompimento da bolha institucional e acadêmica que supostamente protege o aluno. É preciso sair da faculdade e ver o mundo real, nos sentidos figurado e literal. Além disso, o desenvolvimento de habilidade tão específica requer, por evidente, o engajamento do estudante. Isso pode demandar projetos mais interessantes e cujo alcance se revele mais amplo. Uma boa dose de realidade, de autonomia e de desafio é parte importante da receita. Em síntese: visitas externas, liberdade no trato com o cliente, independência na condução dos casos e litigância estratégica com repercussão geral. É essencialmente disso que se precisa.

Feitos esses diagnósticos, vem a parte mais difícil do problema. Que soluções apresentar? Como implementá-las? Como vencer as resistências naturais, fruto do conservadorismo humano? Que argumentos usar para aqueles que resistem pelo medo da perda de poder, da competição, da necessidade de aprendizado ou simplesmente do novo, qualquer que seja ele? Como e por onde começar?

A Escola de Direito de Brasília reconhece que esse é um trabalho longo e complexo, sujeito a todo tipo de obstáculo e a alguns equívocos, que são parte necessária do amadurecimento e da modernização da instituição, bem como daqueles que a integram. O maior inimigo é a inércia. Foi preciso agir rápido, começar por algum lugar.

Em tal contexto, promoveu-se, nos últimos meses, uma profunda reformulação curricular e metodológica no âmbito da instituição. Passou-se de 3% para 20% de disciplinas optativas. Novos professores foram agregados ao quadro docente. Matérias antes intocáveis deixaram de ser obrigatórias. Novas matérias foram apresentadas. Instituíram-se cinco Seminários Interdisciplinares, com conteúdos diferentes à livre escolha dos alunos. Eles contam com ao menos dois professores em sala de aula. Esses docentes são de áreas distintas do Direito ou mesmo de fora do Direito. Há, por exemplo, um Seminário Interdisciplinar sobre Bioética, comandado por um Professor de Direito Civil e um Educador especializado em Filosofia. Existem, agora, disciplinas em inglês, potencializando-se um processo de internacionalização que já se faz presente há alguns anos. As disciplinas optativas e os Seminários Interdisciplinares podem ser frequentados por alunos de diferentes semestres, com algum cuidado na verificação dos pré-requisitos. O Núcleo de Prática Jurídica foi reformulado e conta agora com duas Clínicas Especiais, uma delas sobre direitos fundamentais e a outra sobre habilidades específicas do profissional do Direito. Além disso, visitas regulares aos presídios locais e acompanhamento de casos de presos estão sendo incrementados. São mudanças importantes, feitas com a velocidade necessária. O aprimoramento nos parece evidente: (a) um ambiente acadêmico mais integrado, (b) maior liberdade e engajamento dos alunos, (c) mais entusiasmo de todos os participantes, (d) interação entre os estudantes de variados semestres e entre os próprios professores, (e) aprofundamento do processo de internacionalização, (f) mudanças metodológicas relevantes em sala de aula, dentre outros aspectos.

É inegável, contudo, que ainda há muito a fazer. Os diagnósticos, fruto de um trabalho árduo, transparente e plural, estão em nossas mãos. As soluções ainda estão sendo construídas, é verdade. Acreditamos, de todo modo, que a mudança mais importante já está acontecendo. Ela é silenciosa, intangível, quase imperceptível. Trata-se do amadurecimento de uma cultura de ensino totalmente voltada ao aluno, à sua formação humana e profissional. Cuida-se de incutirem-se em nossos estudantes habilidades específicas, potencializando a sua inteligência emocional, maturidade, criatividade, análise crítica e responsabilidade social, sem se esquecer do conhecimento técnico, evidentemente. Temos ainda um longo caminho, mas seguimos avançando.

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Marcelo Proença é doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), é procurador do Distrito Federal, advogado e coordenador do Curso de Graduação da Escola de Direito de Brasília – EDB/IDP

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