Carlos Teixeira
Jornalista I Radar do Futuro
Enfim, exatamente no meio do inverno, em agosto, os efeitos da Covid-19, a pandemia que parou o mundo, são controlados o suficiente para que o mundo possa sentir algum alívio. No Brasil, a estação vem ajudando, com um frio apenas eventual e moderado. Você se sente livre agora, quando o governo baixou a guarda e todas as restrições à movimentação e aglomeração de pessoas foram retiradas. O isolamento chegou ao final. Podemos realizar os desejos imaginados durante o confinamento entre quatro paredes.
Enfim, o retorno à academia. Com os aparelhos de musculação e de exercícios aeróbicos. A possibilidade de perder o peso acumulado em rotinas de sono e geladeira. Estranhamente, em frente à porta do paraíso dos atletas, desejado durante os meses de solidão compartilhada com a família, você recua. Seus olhos percebem um excesso de gente circulando. Muitas pessoas ao mesmo tempo, conhecidas e estranhas. Sem entender bem o que ocorre, algo, como uma força estranha, assume o comando dizendo para voltar. E a sua mente, a desconhecida com quem você vinha se encontrando dentro de casa, diz que ainda não é o momento de retomar totalmente à vida de antigamente.
Então, chegou o momento em que se percebe que o passado não retorna ao passado. Há um novo normal. Durante os dias de quarentena, o infectologista Átila Iamarino reiterava, em entrevistas na televisão e em vídeos publicados no Youtube, que seria uma ilusão pensar que voltaríamos a um mesmo passado. As pessoas começam a entender que não viveram apenas uma pandemia que obrigou pessoas a ficarem em casa durante meses.
Mais que um surto gerado pelo vírus, houve um grande processo de quebra de padrões de vida. Há ganhos, em novas formas de relacionamento com a família e pessoas próximas. Conversas com os filhos rolaram com frequência. O aprendizado a conviver com o apoio da tecnologia. O domínio do home office. E houve a sobrevivência mesmo sem o consumo de produtos irrelevantes. Mas todos sentimos que também existiram perdas. Várias muito pesadas, inclusive, enquanto tivemos oportunidade de conviver com a essência humana.
Construção do cenário
“O que vai acontecer quando o isolamento acabar?”. Responder a pergunta, compreendendo as tendências do futuro de curtíssimo prazo, entre dois ou quatro meses, ou até mesmo um pouco mais, é o objetivo deste trabalho de levantamento de cenários. São possibilidades para as quais a sociedade brasileira, no caso, deve se preparar. Como cenários, não são alternativas fechadas. São consideradas duas incertezas críticas:
- A sociedade vai mudar?
- O governo vai mudar?
Cada uma das incertezas críticas acima gera duas possibilidades de respostas. Trabalhamos com duas perguntas e, para cada uma delas, hipóteses positivas e negativas.
1. a pandemia contribuirá para o desejo de mudar a sociedade?
As pessoas entendem que há um problema de modelo das sociedades, de prioridade de vida individual e social, que precisa ser mudada. É necessário rever o consumismo, as relações pessoais e de trabalho e o modo de interação com a natureza. Elas querem compreender as questões climáticas e como o sistema de produção voltado para o lucro a todo custo e para a ocupação de espaços pode criar novas tragédias.
2. a pandemia NÃO contribuirá para o desejo de mudar a sociedade?
Liberados do isolamento, as pessoas querem apenas voltar para as rotinas. Trabalhar duro para recuperar o tempo perdido, rapidamente. Voltar a frequentas bares nos finais de semana, ir a shows, jogos de futebol. O passado é passado, dizem, enquanto preenchem a agenda com atividades fora de casa. Encontram dificuldades, porque a situação não é mais a mesma de quando a pandemia começou. Diante dos problemas, elas se revoltam. Se tornam ainda mais individualistas, pois as dificuldades crescem diante da ausência de respostas de curto prazo para os problemas econômicos, sociais, ambientais e políticos.
3. o governo reverá as suas prioridades?
O governo Bolsonaro ou um novo governo, imaginando a possibilidade de que ele não se sustente diante da tragédia e dos traumas gerados pelo número de mortes provocadas pela falta de condições de atendimento à população e pelo caos urbano, reconhece que é necessário rever prioridades. Promove mudanças na equipe econômica, convocando especialistas com perfil liberal, mas que reconhecem a necessidade de ampliar a participação do Estado na sociedade. Adota estratégias com foco em investimentos sociais, para compensar os problemas de sobrevivência da população e das pequenas empresas. Propõe a revisão das restrições de gastos públicos, admitindo a necessidade de investir recursos em políticas de apoio às populações.
o governo NÃO reverá as suas prioridades?
As políticas com foco em austeridade e contenção de gastos são mantidas, assim como o atual governo. Ainda com Paulo Guedes no comando, as reformas políticas seguem como prioridade, por conta do aumento da inflação e consequente elevação das taxas de juros para reduzir a possibilidade de disparada de preços. Sob o argumento de que houve excesso de gastos nos meses anteriores, apenas alguns investimentos são realizados. O objetivo é tentar dar satisfação para setores impactados pela crise ao mesmo tempo em que tenta conter o aumento da insatisfação popular diante do mau desempenho da economia.
Acontecimentos prováveis
Há algumas suposições, definidas como certezas por este estudo — com o que qualquer pessoa pode discordar. A principal delas, provavelmente a mais marcante, é a avaliação de que muita gente vai morrer. Entre dezenas de milhares e centenas de milhares. Independente do número, parece também certo que o processo, dadas as restrições da estrutura do sistema de saúde, será traumático para quem for testemunha da história que estamos vivendo.
Outro dado da realidade a considerar na construção do cenário leva em conta que a economia entra em uma fase de retração, com alto desemprego, aumento da miséria e recuperação lenta do ambiente produtivo. Mesmo a informalidade, alternativa de mais da metade da população atual, será insuficiente para atenuar os efeitos das dificuldades de sobrevivência da maioria da população. As microempresas também sofrem perdas diante da retração do mercado de consumo. Um ambiente de alta tensão social.
O isolamento propriamente dito reforça a lista de variáveis mais significativas na construção do futuro. Entre a maioria dos cientistas, defensores da necessidade de imposição de limites à convivência social, a única discordância se refere à avaliação do tempo de duração das quarentenas. Mas é possível que se estenda por três ou quatro meses. Mesmo “apenas” dois meses, uma hipótese bastante provável, será capaz de gerar problemas comportamentais para a população, inclusive com aumento dos casos de depressão e desalento em relação ao futuro.
+ tendências
- Mobilizações por revisão de prioridades sociais
- Mobilizações pela renovação política
- Aumento da violência urbana
- Desalento/depressão: expectativas
- Baixo crescimento da economia
- Descrença no neoliberalismo
CENÁRIO 1: Combinação positiva
Sociedades e governos buscam novos modelos para o futuro
- a pandemia contribui para o desejo de mudar a sociedade
- o governo revê as suas prioridades
O tempo disponível e a obrigação de testemunhar os impactos da pandemia de dentro de casa serviram para a população entender que há algo muito errado na forma como a humanidade se relaciona com o ambiente social, com o país e com o planeta. Compreende que a crise era prevista há tempos e que novas pandemias podem ocorrer, assim como outras tragédias, como o aquecimento global, caso não ocorra uma reflexão aprofundada sobre as forças que levam à repetição de fenômenos extremos, capazes de levar à morte centenas de milhares ou milhões de seres humanos.
Aílton Krenak, um dos mais destacados ativistas do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas será ouvido. Segundo ele, “o modo de funcionamento da humanidade entrou em crise”. Não só, o capitalismo como o praticado até o início de 2020 terá sua decadência decretada.
O fato é que as mortes provocadas pelo coronavírus, o isolamento forçado, o aumento da desigualdade econômica e os problemas sociais aumentam a percepção do papel essencial desempenhado pelo setor público no atendimento à população. E levam à mobilização por uma nova consciência. O governo é obrigado a rever a sua política focada exclusivamente em reformas neoliberais. Não havia como não rever.
A tese do fim do neoliberalismo ganhou adesões de peso pelo mundo. No Brasil, economistas liberais passaram a defender a redefinição de prioridades, aceitando a possibilidade de acumulação de déficits das contas públicas para reverter a recessão que os países vão enfrentar adiante. Até mesmo o Financial Times, um dos principais jornais do mundo das finanças, em um editorial, defendeu reformas radicais. Desta vez avalizando a tese de que os governos tenham maior intervenção na economia.
A convergência cria um ambiente favorável, mais tolerante, para a adoção de medidas capazes de reduzir os efeitos negativos da pandemia. Há maior solidariedade para enfrentar os traumas deixados pelas mortes acumuladas e as cenas de desespero de quem não conseguiu atendimento médico. População e governo parecem encarar a crise como um aprendizado. A disposição favorável à busca de soluções conjuntas reduz a ansiedade pela retomada das rotinas, mesmo com o quadro desolador.
Com nova equipe econômica, formada por integrantes da nova corrente teórica que rejeita dogmas tradicionais de controle da moeda, neo-keynesianos, por definição, volta a existir espaços para programas sociais que enfrentem o elevado desemprego e as dificuldades dos empresários, inclusive com o apoio para a renegociação das dívidas acumuladas durante os meses de paralisação de atividades. Essenciais em todo o processo de expansão da epidemia, os profissionais da área de saúde recebem a promessa de retomada de investimentos públicos na infra-estrutura de atendimento à população.
CENÁRIO 2: Combinação explosiva
Nem a sociedade e nem governantes aprendem
- a pandemia NÃO contribui para o desejo de mudar a sociedade?
- o governo NÃO revê as suas prioridades?
Encerrado o isolamento, com a população traumatizada com todo o processo, inclusive o grande número de mortes, há uma correria incontrolável para retomar as atividades profissionais e o retorno às aulas dos filhos. Tudo o que se pretende é, agora, retomar o passado. Voltar a máquina do tempo, sem levar muito conta o ambiente externo, de miséria crescente e desalento.
A economia vive o caos, com recessão mundial e no mercado interno. Os preços sobem ainda mais porque empresários querem recuperar perdas e reverter os impactos do grande número de falências. O altíssimo endividamento tanto de pessoas quanto de micro e pequenas empresas leva à expectativa de que as soluções para a crise virão a longo prazo.
Os bancos resistem em negociar com os seus credores, mesmo tendo obtido socorro trilionário do governo para compensar a elevada inadimplência de pessoas físicas e jurídicas. É nítida a resistência da equipe econômica em reverter a política econômica que vinha sendo praticada anteriormente. Privatização, cortes e reforma administrativa do estado, restrição de recursos para programas sociais são novamente prioritários na agenda governamental.
Especialmente para compensar os elevados gastos, realizados à revelia do desejo dos gestores públicos, de socorro à população afetada pela crise de saúde e da economia, o governo pretende eliminar gastos. Mas enfrenta novas dificuldades: o Congresso se posiciona abertamente contra novas medidas que signifiquem austeridade.
A tragédia se amplia de outra forma agora. A insatisfação popular crescente diante da falta de ações de curto prazo estimula o aumento da violência. A população busca alternativas individuais, isoladas ou em grupos de revoltados, o que aumenta o nível de tensão da sociedade. Cresce, também, o risco de radicalização do ambiente interno, com protestos e saques de populações esfomeadas. Sem controle diante da mobilização popular, a tentação de radicalização do ambiente é crescente, levando à perspectiva de rupturas institucionais.
CENÁRIO 3 – Renovação pela política
Governo muda, mas a população quer apenas o passado de volta
- a pandemia NÃO contribui para o desejo de mudar a sociedade?
- o governo revê as suas prioridades?
Pressionado pela profunda crise gerada pelo elevado número de mortes e o desemprego e a desarticulação do setor produtivo do país, além da recessão global, o governo mobiliza uma nova equipe econômica, de viés keynesiano, para tentar convencer a população a mudar comportamentos. Eles tentam demonstrar a intenção de colocar em prática ações que, dentro dos parâmetros capitalistas, possibilitam uma forte intervenção do estado na economia.
Mas a pressa por soluções tende a ter peso maior do que boas intenções, que levem em conta o apoio às demandas de trabalhadores, empresários e dos cidadãos em geral. A percepção sobre a realidade e o desalento sobre o futuro levam os indivíduos aos movimentos de massa, que tendem ao descontrole. É necessário entender que o brasileiro assume a sua irracionalidade.
Mesmo traumatizada pela tragédia causada pela pandemia do coronavírus, e contra as tentativas de criação de ações coordenadas e favoráveis, a população considera prioritário retomar a vida mais rapidamente possível. Ela tem pressa, quer enviar as crianças para escolas, arranjar trabalho ou voltar a abrir um comércio, assumir um trabalho para aplicativos e retomar as atividades de lazer para esquecer todo o tempo de isolamento. Recuperar todo o prejuízo de meses de reclusão.
As pessoas desconsideram que a vida não tende a voltar à normalidade rapidamente. A economia estará vivendo em processo de recessão profunda, com perspectiva de recuperação lenta da geração de empregos no geração de emprego e de renegociação de dívida da população das pessoas que ficaram longos períodos dentro de casa.
CENÁRIO 4 – Mobilizações sociais
Sociedade promove mudanças, mas o governo radicaliza
- a pandemia contribui para o desejo de mudar a sociedade?
- o governo NÃO revê as suas prioridades?
Tão logo são baixadas as medidas de restrição do acesso da população as ruas por conta da academia, o governo retoma os programas de austeridade sob alegação de que apenas dessa forma será possível ao país se reerguer dos traumas deixados por meses de economia travada e isolamento da população. Trilhões de reais foram gastos, principalmente com o sistema financeiro.
A equipe econômica volta a falar em cortes de despesas enquanto socorre os bancos pela elevada inadimplência que impactou os seus resultados. Com perdas crescentes de apoio popular e mesmo entre a suas bases de apoiadores tradicionais, como evangélicos e grupos de militares, o governo tende à radicalização.
Para população fica evidente que o objetivo do governo não incorpora as expectativas mais urgentes. A população convive com grande número de desempregados ausência de perspectivas e a miséria crescente de um lado provoca revolta. De outro, reforça a necessidade de mudança das relações sociais.
Cresce a mobilização popular, em especial a rejeição ao modelo neoliberal. Globalmente, há uma onda de questionamento sobre o modelo econômico. No mundo inteiro as pessoas reivindicam o fortalecimento do Estado, a prioridade para o bem-estar social, como condição necessária para evitar novas tragédias. As populações tomam consciência, também, que a pandemia não foi um evento isolado, mas algo já previsto anteriormente. Sem mudanças, que inclusive levem em conta a questão climática a tendência é de repetição de novas tragédias.
Em resumo