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Por que os anos 2020 são a “era do desalento em série”?

Quando você acha que uma tragédia acabou, uma nova começa. Na “era do desalento em série”, nos anos 2020, não há volta à normalidade, como imaginou-se com a pandemia

profissional de saude, cabisbaixo, anda sozinho pela rua
Profissional de saude, cabisbaixo, anda sozinho pela rua. Foto: Pixabay

CARLOS PLÁCIDO TEIXEIRA
Jornalista Responsável | Radar do Futuro

Descemos na estação do futuro. Há sinais evidentes de que, na entrada da década de 2030, a humanidade tenta superar os traumas gerados por crises sucessivas. Desde o início do século foram muitas tragédias, aceleradas em tempos recentes. Nos loucos anos 2020, todas as promessas da utopia igualitária, prometidas pelas inovações tecnológicas, foram frustradas.

As expectativas de construção de um mundo melhor para os povos de todos os continentes esbarraram em acontecimentos previstos anteriormente. Não foi por falta de aviso de especialistas e organizações públicas. Como a crise do clima, debatida desde a década de 1970, quando foi criado Primeiro Dia da Terra, movimento ambiental que atingiu forte influência ao difundir a preocupação com a degradação global. Os alertas foram, entretanto, sistematicamente desconsiderados pelo sistema econômico e político.

As ilusões começaram a ser destruídas logo no final de 2019, com a pandemia, responsável pela morte de milhões de pessoas. A onda de surpresas evitáveis seguiu com a decadência da economia ocidental, precarização do trabalho, desemprego, miséria e concentração de renda, guerras entre nações, conflitos sociais e políticos e os fenômenos climáticos severos. O otimismo que muitos sentiam foi eliminado lentamente, a cada ano desse louco período. Até chegar ao pessimismo mais profundo.

Os dez anos de acumulação de incertezas e de surpresas sucessivas ganharam o nome de "Era do Desalento em Série"
foto: unesco - criança ucraniana olha pela janela
Chamamos, então, a década de “Era do Desalento em Série“: quando um problema parecia ter chegado ao fim, um novo acontecimento surgia no formato de farsa ou tragédia.Foto:Gerhard Gellinger/Pixabay.

Antes, o otimismo tecnológico

Antes dos acontecimentos marcantes do período, os antecipadores de tendências e consultores de negócios vibravam com as possibilidades de disrupção das inovações baseadas em poder computacional e internet. Seria, enfim, segundo os evangelizadores de inovações, a materialização das oportunidades da sociedade digital, enterrando de vez a revolução industrial.

“Anos 2020 serão a década digital”, previam os organizadores do maior encontro global de tecnologia”, o Web Summit, realizado em dezembro, no final dos primeiros 12 meses da pandemia, em formato 100% on line.

O otimismo, parecido com o que marcou a “bolha da internet” do início do século, era fortalecido, naquele início dos 2020, pela potência tecnológica. Os mercados teriam as redes 5G de internet e avanços da inteligência artificial, como forças motrizes da transformação de todo sistema produtivo e de consumo.

Um campo ideal para a internet das coisas, robotização, automação de serviços, cidades inteligentes, indústria 4.0 e monitoramento individual e coletivo. O máximo de modernidade. A tecnologia com poder de transformação absoluto, em direção à singularidade, o instante mágico em que a inteligência das máquinas ultrapassa o poder do cérebro humano.

Em artigo publicado no site g1, o cientista político Sérgio Amadeo reforçava a ausência de dúvidas de que a década seria de mudanças revolucionárias e constitutivas de uma nova era. As transformações profundas e radicais, como a globalização, a revolução digital, o domínio da genômica, a inteligência artificial, a internet das coisas, já deixaram o estágio de sementes e são mudas em pleno crescimento. Serão os motores de mudanças ainda mais rápidas e fundantes”, defendia.

Ao comparar a história de cem anos atrás, ele identifica uma “diferença crucial”. A década de 1920, iniciada com o fim da Primeira Guerra Mundial e encerrada com a Grande Depressão nos Estados Unidos, também teve sementes das transformações da história do século 20. Estamos em plena aceleração da mudança climática e da sexta grande extinção de espécies.

Sérgio Amadeo previa que “os anos 2020 seriam marcados pela emergência climática e pelas pressões da urgência em adotar medidas ambiciosas, drásticas mesmo, para evitar um cataclismo climático e o colapso da biosfera. A década inicia com a proliferação de governantes incidentais, todos hostis às regras e formalidades da democracia. Ainda há tempo de nos livrarmos democraticamente de candidatos a Hitler e Mussolini pelo mundo afora”.


A sociedade que não aprende

Bem que Gaia, a deusa da Terra, presente nas mitologias grega e romana, enviou recados para os humanos. Bons entendedores compreenderam as mensagens de alerta para que as pessoas não ficassem contando com a volta da “normalidade”, uma expectativa compartilhada no primeiro momento da pandemia. A deusa dos fenômenos da natureza parecia avisar que “se o ser humano esquecer os problemas, esperar o retorno à vida de sempre e não mudar, novos fenômenos virão para cobrar a dívida deixada para a humanidade e para o planeta”.

Gaia teria, sem dúvida, bons motivos para enviar as punições para ocupantes da Terra. Esquecemos as tragédias assim que elas passam, ou até antes, com apostas na volta à vida como ela era. Foi assim nas guerras mundiais do século passado. As sociedades dominadas pelo consumo sem limites não aprendem com os seus erros. Quase cem anos depois, a crise pandêmica foi companheira de movimentos de extremistas de direita, em iniciativas de articulação do retorno de nazistas e fascistas ao cenário de países e do planeta. Também após quase um século, acontecimentos de todos os tipos ocorreram ao mesmo tempo em que seguia o lento processo de expansão da consciência civilizacional.

O mundo ainda sentia os reflexos da crise econômica de 2008 quando a pandemia começou a se espalhar. A Covid-19 respondeu pela morte de cerca de 15 milhões de pessoas. Alertas sobre a emergência — significando urgência e ascensão — de crises sanitárias foram amplamente divulgados desde o final do século passado.

Seria, segundo organizações científicas, o resultado natural do processo de intervenção humana descontrolada em todo o planeta. O avanço de aglomerações populacionais em áreas de preservação, destruição de florestas, contato com animais silvestres, deficiências na estrutura sanitária e miséria crescente, entre outros fatores, garantiram a disseminação do vírus. Por trás de todas as variáveis, a ação inconsequente humana é a força dominante. O sistema econômico dominante, o capitalismo, virou o monstro que atropela tudo pela frente.

“Novas crises sanitárias são inevitáveis”, antecipou a diretora-geral adjunta da Organização Mundial da Saúde, Mariângela Simão, em outubro de 2021. Ainda estávamos com hospitais cheios de doentes e necrotérios repletos de mortos, quando os sinais de alerta sobre a possibilidade de outros surtos foram ignorados. Os cientistas diziam, então, que o maior dilema seria identificar ‘quando’ haverá a próxima. Não seria uma questão de ‘se ocorreria’. Mas a sociedade, com lideranças políticas e interesses econômicos à frente, não vai aprender.

Década de 2020: a sociedade deprimida

Exigências para ter sucesso, ser perfeito em tudo e a uma cultura que estimula a competitividade tem levado jovens a problemas de saúde mental - foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Os recordes de problemas mentais foram todos batidos desde a pandemia Foto: Pixabay

Na verdade, chegamos ao início de 2031 com a confirmação de previsões da OMS, também no final do século passado, sobre a emergência da depressão como o mal do século. Os recordes de problemas mentais foram todos batidos desde a pandemia. Foram danos colaterais, decorrentes das restrições, do medo, da doença propriamente, de perdas e de dificuldades financeiras. Os mais jovens, que já enfrentavam a escassez de oferta de empregos de qualidade foram os mais impactados pelo cenário de adversidades.

Logo após o período de isolamento, nem deu tempo para respirar ou para sentir um mínimo de alívio. Muito menos para paz. A sequência de eventos foi estendida pelo conflito militar entre Ucrânia e Rússia, estimulado pelos interesses bélicos e econômicos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), comandada pelos Estados Unidos. A guerra resultou em inflação global e retração econômica. E mais tragédias humanitárias. Na Europa, a interrupção do fornecimento de gás russo provocou desabastecimento de energia e milhares de mortes por frio. A fome e a miséria foram o alimento da radicalização política e social.

Daqui, abaixo da linha do Equador, os momentos de tensão vividos por nós incluíram a convivência com a possibilidade de uma guerra nuclear. Poderíamos ser as vítimas da decadência do poder imperial dos Estados Unidos. Foram tempos de incertezas extremas. Com o objetivo de impedir a expansão da China, os donos do poder econômico e político, associados aos militares norte-americanos, provocaram o medo permanente de novos conflitos.

Mas não adiantava mais, a decadência dos EUA seguiu, levando no mesmo barco os europeus, seus apoiadores tradicionais. Os países ocidentais amargaram os erros estratégicos, ao se submeter aos projetos de poder norte-americanos. Os impactos em suas economias internas foram negativos durante anos, inclusive com a crise de abastecimento de energia. E viram crescer a radicalização dos ambientes políticos e sociais. Como efeito mais traumático, os movimentos de extrema-direita saíram das sombras, ressuscitando grupos nazistas e fascistas.

Com a resistência de países orientais e apoiados por rebeliões populares globais, os chineses fortaleceram os seus acordos internacionais e seus projetos econômicos e de influência pelo mundo. Com capacidade de negociação e apostas na paz, a China cumpriu as previsões de se tornar a maior economia do planeta antes do prazo previsto.

A sociedade traumatizada

Cidades litorâneas, como o Rio de Janeiro, Florianópolis e Recife, no Brasil, Nova York e Miami, nos Estados Unidos, pagam caro pelo tratamento equivocado das questões climáticas

Também convivemos com os efeitos da crise climática, aprofundada desde meados da década de 2020. A ausência de ações governamentais efetivas favoreceu o crescimento dos fenômenos climáticos extremos. No Sul brasileiro, furacões passaram a ser frequentes, assim como períodos marcados por secas e enchentes, também comuns nas outras regiões do País.

No Sudeste, problemas de abastecimento de água no interior e marés inundando cidades litorâneas. No Centro-Oeste e Norte, o pantanal e a Amazônia foram destruídos pela ocupação desenfreada e pela desestruturação dos órgãos de monitoramento e fiscalização, ocorrida durante o governo Bolsonaro.

Os problemas globais também se acirraram por conta da ausência de cumprimento das metas de controle das emissões globais de gases do efeito estufa. Nada foi alcançado em 2025, apesar dos alertas contundentes dos Relatórios de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Em 2022, 278 cientistas de 65 países alertaram que a chance de manter o limite de 1,5°C de aquecimento, estabelecido pelo Acordo de Paris, dependeria do rigor das iniciativas dos três anos seguintes. Os interesses econômicos continuaram a ser mais importantes para as lideranças planetárias.

Pós-capitalismo: como os 2020 geram esperança

Não confio em ninguém com mais de 30. A música da década de 1970 é resgatada em 2030 pela geração dos nascidos no início do século. São tempos de revisão das inúmeras tragédias herdadas de pais, mães, avôs e avos. Enfim, de todas as gerações anteriores. Os antepassados encaram a acusação de que foram relapsos diante dos alertas sobre os riscos impostos à sobrevivência do planeta.

O conflito de gerações tende ao extremo. Quem nasceu no século atual, viveu parte da adolescência ou início da vida adulta sob a influência das crises, responsáveis pela “era do desalento”. Durante os anos 2020, cresceu o rancor diante do consumo descontrolado e seus efeitos. Com a falta de trabalho decente e a miséria disseminada, em contraste com a concentração de renda, dos poucos trilionários seguros em ambientes controlados. Com a destruição da natureza e os impactos tragédias climáticas. Além da revolta diante do apoio dado a grupos radicais de direita, que fizeram renascer os crimes de nazistas e fascistas.

Em 2022, muitas pessoas levaram susto ao ver uma nova Greta Thunberg, já aos 19 anos. A ativista sueca ganhou fama ainda como adolescente, aos 15 anos, ao liderar a mobilização de jovens do planeta a favor de causas ambientais. Às vésperas de mais um grande evento internacional, que se recusou a frequentar, ela revelou a expansão da consciência sobre o mundo. “Uma nova agenda extrema”, definiram os meios de imprensa corporativos.

Greta Tunberg mudou o discurso. Ela descobriu a necessidade de “transformar o sistema capitalista opressivo e racista”. Entendeu como os grandes eventos servem apenas como palcos para um espetáculo vazio. A conscientização dos nascidos no pós-2000 é a maior força para o otimismo em relação ao futuro. Eles serão os prováveis criadores do pós-capitalismo.

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