Novo relatório de painel internacional de cientistas diz que influência humana no planeta em crise é “inequívoca”. Muitos efeitos são irreversíveis, mas dependemos de mais atos que promessas
Carlos Plácido Teixeira
Jornalista I Radar do Futuro
Se nada for feito agora mesmo e de verdade, as coisas vão caminhar de mal para pior. Em síntese, este o alerta emitido, neste dia 9 de agosto, no novo relatório sobre mudanças climáticas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês). No dia em que o organismo vinculado à Organização das Nações Unidas apresentou o seu parecer mais preocupante sobre o futuro do planeta, as massas humanas seguiram suas rotinas normalmente. O evento foi acompanhado por cerca de 7 mil pessoas no mundo. Número próximo ao de jornalistas que acompanharam as Olimpíadas do Japão, até o domingo anterior.
A informação e suas repercussões não frequentaram as lista dos temas mais comentados nas redes sociais. Não frequentaram a lista dos assuntos mais lidos dos portais de notícias. Onde, aliás, sequer foi tema de destaque das manchetes do dia. O estudo mostra que o planeta, incluindo a sociedade, claro, está diante de mudanças sem precedentes no clima. Em tempo menor do que o previsto em documentos anteriores, tendemos a sofrer com ondas de calor cada vez mais extremas, secas e inundações. Os limites das temperaturas sendo quebrados continuamente.
O momento do anúncio serviu para que países vulneráveis à mudança climática emitissem mensagens sobre a iminência da extinção se nenhuma ação for tomada com urgência. Os líderes mundiais, incluindo o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, chamaram o relatório de um “alerta para o mundo”. Em matéria publicada pelo site da BBC, o professor Ed Hawkins, da University of Reading, no Reino Unido, e um dos autores do relatório, afirma que os cientistas não podem ser mais claros neste ponto. “É uma constatação de um fato, não podemos ter mais certeza; é inequívoco e indiscutível que os humanos estão esquentando o planeta.”
Na mesma linha de discurso, Petteri Taalas, secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial, diz que “usando termos esportivos, pode-se dizer que a atmosfera foi exposta ao doping, o que significa que começamos a observar extremos com m ais frequência do que antes.” “Estamos pagando com nossas vidas pelo carbono que outra pessoa emitiu”, disse Mohamed Nasheed, um ex-presidente das Maldivas que representa quase 50 países vulneráveis aos efeitos da mudança climática. As Maldivas são o país mais pobre do mundo e Nasheed disse que as projeções do IPCC seriam “devastadoras” para o país, colocando-o à “beira da extinção”.
Pontos-chave do relatório do IPCC
- A temperatura da superfície global foi 1,09ºC mais alta na década entre 2011-2020 do que entre 1850-1900.
- Os últimos cinco anos foram os mais quentes já registrados desde 1850
- A recente taxa de aumento do nível do mar quase triplicou em comparação com 1901-1971
- A influência humana é “muito provável” (90%) a principal causa do recuo global das geleiras desde a década de 1990 e da diminuição do gelo marinho do Ártico
- É “praticamente certo” que extremos de calor, incluindo ondas de calor, tornaram-se mais frequentes e mais intensos desde a década de 1950, enquanto os eventos frios se tornaram menos frequentes e menos graves
Alerta sobre a crise
A avaliação sobre o futuro do planeta foi desenvolvida por um grupo de cientistas, integrantes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), organismo vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU). Suas análises são endossadas pelos governos mundiais. O relatório é especialmente importante porque revela a primeira grande revisão da ciência das mudanças climáticas desde 2013. Seu lançamento ocorre menos de três meses antes de uma importante cúpula do clima em Glasgow, conhecida como COP26.
Os cientistas envolvidos denunciam que as mudanças climáticas são reais, causadas pelo homem. E há sinais de que estão se intensificando numa velocidade espantosa, sem precedentes nos últimos dois mil anos (pelo menos) e com consequências potencialmente gravíssimas para os seres humanos e o planeta. Quem acompanha o noticiário sobre ondas de calor extremo no Canadá e nos Estados Unidos, intensificação de tempestades e secas, causadoras de grandes incêndios, deve entender algo sobre o cenário em desenvolvimento.
Muitas das consequências previstas, como derretimento de geleiras e o aumento do nível do mar, são irreversíveis. Como ocorre com frequência, os alertas são acompanhados pelo discurso de que ainda há tempo de evitar uma calamidade climática global, desde que a espécie humana reduza imediatamente, e de forma bastante significativa, suas emissões de gases do efeito estufa para a atmosfera.
“A mensagem do IPCC é cristalina: mudar agora e preparar para o impacto. As piores previsões dos cientistas estão se tornando realidade mais rápido do que o esperado, os pontos de ruptura estão se aproximando e o único nível aceitável de emissões é zero”, declarou a especialista em políticas climáticas do Observatório do Clima, Stela Herschmann, em reportagem especial do Jornal da USP. A velocidade de aquecimento observada nas últimas cinco décadas é sem precedentes nos últimos dois mil anos, segundo os cientistas.
“A escala das mudanças recentes no sistema climático como um todo e o estado atual de muitos aspectos do sistema climático não têm precedentes num período de muitos séculos a muitos milhares de anos”
“Olhando especificamente para o Brasil, o que salta aos olhos é uma redução drástica na projeção da precipitação, particularmente no Nordeste e no Brasil central, o que pode ter impactos muito importantes sobre a produtividade agrícola brasileira. Além disso, o aumento do nível do mar terá impactos muito importantes nas áreas costeiras do país”, destaca o físico brasileiro Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP). Ele reforça o coro dos que tentam fazer o alerta chegar mais forte e distante. “É hora de agir, imediatamente”,.
Uma das principais inovações deste relatório, segundo ele, é a maneira como são quantificadas as ocorrências de eventos climáticos extremos e relacionadas às mudanças climáticas induzidas pelo homem, de forma muito mais clara do que nos relatórios anteriores. De uma forma geral, a projeção é que quanto maior o aquecimento, maior a frequência e a intensidade de eventos extremos, e maior a probabilidade de eventos que hoje são raros se tornarem relativamente comuns. Eventos de seca que, antes da interferência humana no clima, só ocorriam uma vez a cada dez anos, por exemplo, poderão passar a ocorrer duas a três vezes no mesmo período, num planeta 2 graus mais quente. Eventos de calor extremo que só ocorriam uma vez a cada 50 anos, poderão ocorrer 14 vezes no mesmo período de tempo.
“Não está se mudando apenas o clima médio, mas também os extremos climáticos”, disse o pesquisador Lincoln Alves, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que também é autor do relatório do IPCC e foi um dos responsáveis pela elaboração de um atlas digital interativo, que permite visualizar todas essas alterações climáticas. Muitos dos eventos extremos que tem ocorrido nos últimos anos ao redor do mundo, segundo ele, seriam “muito improváveis” de acontecer sem o aquecimento global induzido pelo homem.
“É praticamente certo que extremos de temperatura quente (incluindo ondas de calor) se tornaram mais frequentes e mais intensos na maioria das regiões terrestres desde 1950, enquanto extremos de temperatura fria (incluindo ondas de frio) tornaram-se menos frequentes e menos severos, com alta confiança de que a mudança climática induzida pelo homem é o principal motivador dessas mudanças. Alguns extremos de calor recentes observados na última década teriam sido extremamente improváveis de ocorrer sem a influência humana no sistema climático. As ondas de calor marinhas dobraram de frequência aproximadamente desde a década de 1980, e a influência humana muito provavelmente contribuiu para a maioria delas desde pelo menos 2006”, diz o resumo executivo do relatório.
Cenários: o que esperar
Para este relatório, o IPCC elaborou cinco novos cenários de emissões de gases do efeito estufa para o período 2015-2100, incluindo: dois cenários mais otimistas, em que as emissões decaem rapidamente nas próximas décadas; um cenário intermediário, em que as emissões permanecem estáveis até 2050 e diminuem gradativamente a partir daí; e dois cenários mais pessimistas, em que as emissões continuam a crescer até o fim do século.
A avaliação pelo viés das emissões de gases não sinaliza as variáveis mais importantes para a compreensão sobre o futuro da questão climática. A expectativa é toda transferida para as negociações envolvendo governos. E o sistema que sustenta as lideranças no poder. Sem questionamento do modelo de produção não haverá saída. Afinal as negociações em cúpulas não são efetivadas pelas empresas e instituições responsáveis pelas emissões.
Mensagens principais
Veja abaixo as 14 grandes conclusões listadas no Sumário para Tomadores de Decisão do sexto relatório do Grupo de Trabalho 1 do IPCC (cada uma delas é explicada de forma detalhada no documento):
- É inequívoco que a influência humana aqueceu a atmosfera, o oceano e a terra. Ocorreram mudanças rápidas e generalizadas na atmosfera, no oceano, na criosfera e na biosfera.
- A escala das mudanças recentes no sistema climático como um todo e o estado atual de muitos aspectos do sistema climático não têm precedentes num período de muitos séculos a muitos milhares de anos.
- A mudança climática induzida pelo homem já está afetando muitos extremos climáticos e meteorológicos em todas as regiões do globo. Evidências de mudanças observadas em extremos, como ondas de calor, precipitação forte, secas e ciclones tropicais e, em particular, sua atribuição à influência humana, fortaleceram-se desde o Quinto Relatório de Análise (AR5).
- O conhecimento melhorado dos processos climáticos, evidências paleoclimáticas e a resposta do sistema climático ao aumento da forçante radiativa fornecem uma melhor estimativa da sensibilidade climática de equilíbrio de 3 °C, com uma faixa mais estreita em comparação com a do AR5.
- A temperatura global da superfície continuará a aumentar até pelo menos meados deste século em todos os cenários de emissões considerados. As taxas de aquecimento global de 1,5 °C e 2 °C serão excedidas durante o século 21, a não ser que reduções profundas nas emissões de CO2 e outros gases do efeito estufa ocorram nas próximas décadas.
- Muitas mudanças no sistema climático tornam-se maiores numa relação direta com o aumento do aquecimento global. Elas incluem aumentos na frequência e na intensidade de extremos de calor, ondas de calor marinhas e fortes precipitações, secas agrícolas e ecológicas em algumas regiões, proporção de ciclones tropicais intensos, bem como reduções no gelo do mar Ártico, cobertura de neve e permafrost.
- Projeta-se que a continuidade do aquecimento global irá intensificar ainda mais o ciclo global da água, incluindo sua variabilidade, precipitação global das monções e a gravidade dos eventos de chuva e seca.
- Em cenários com emissões crescentes de CO2, projeta-se que os sumidouros de carbono oceânicos e terrestres se tornem menos eficazes na redução do acúmulo de CO2 na atmosfera.
- Muitas mudanças devido a emissões passadas e futuras de gases de efeito estufa são irreversíveis por séculos a milênios, especialmente mudanças no oceano, nos mantos de gelo e no nível global do mar.
- Os fatores naturais e a variabilidade interna irão modular as mudanças causadas pelo homem, especialmente em escalas regionais e no curto prazo, com pouco efeito no aquecimento global centenário. É importante considerar essas modulações no planejamento de toda a gama de mudanças possíveis.
- Com o aumento do aquecimento global, projeta-se que cada região experimentará cada vez mais mudanças simultâneas e múltiplas nos fatores de impacto climático. Mudanças em vários fatores de impacto climático seriam mais difundidas a 2 °C, em comparação com o aquecimento global de 1,5 °C, e ainda mais difundidas e/ou pronunciadas para níveis de aquecimento mais elevados.
- Consequências de baixa probabilidade, como colapso do manto de gelo, mudanças abruptas na circulação oceânica, alguns eventos extremos compostos e aquecimento substancialmente maior do que a faixa muito provável avaliada de aquecimento futuro não podem ser descartados e fazem parte da avaliação de risco.
- Do ponto de vista das ciências físicas, limitar o aquecimento global induzido pelo homem a um nível específico requer a limitação das emissões cumulativas de CO2, atingindo pelo menos zero emissões líquidas de CO2, junto com fortes reduções de emissões de outros gases de efeito estufa. Reduções fortes, rápidas e sustentadas nas emissões de CH4 (metano) também limitariam o efeito de aquecimento resultante do declínio da poluição por aerossol e melhorariam a qualidade do ar.
- Cenários que prevêem baixas ou muito baixas emissões de gases do efeito estufa (SSP1-1.9 e SSP1-2.6) levam a efeitos perceptíveis, num prazo de anos, nas concentrações de gases de efeito estufa e aerossóis e na qualidade do ar, em comparação com cenários de alta e muito alta emissão (SSP3-7.0 ou SSP5-8.5). Sob esses cenários contrastantes, diferenças discerníveis nas tendências da temperatura da superfície global começariam a emergir da variabilidade natural em cerca de 20 anos, e em períodos de tempo mais longos para muitos outros fatores de impacto climático.
Em resumo