Relatório “Tendências Globais 2040: Um Mundo Mais Contestado” mostra uma nova percepção de analistas de inteligência dos EUA, segundo artigo de especialista
Ian Klaus – Bloomberg
O mundo de 2040 provavelmente estará cheio de perigos. E para navegar na paisagem de incertezas, as cidades devem assumir papéis de liderança. A constatação está registrada no relatório de 144 páginas, “Tendências Globais 2040: Um Mundo Mais Contestado”, em que analistas de inteligência dos Estados Unidos traçam uma visão de um futuro tenso, como uma continuidade dos efeitos da pandemia de Covid-19. Os cenários combinam vigilância tecnológica distópica, instabilidade política provocada pelas mudanças climáticas e competição geopolítica acirrada entre os Estados Unidos e a China.
A constatação surpreendeu o articulista Ian Klaus, do site da Bloomberg. Talvez porque uma breve pesquisa no sistema de busca do Google mostra uma convergência de análises positivas sobre o futuro. A visão predominante é de cidades organizadas pela inteligência artificial, carros autônomos circulando sem engarrafamentos, drones atravessando os ares para a realização de entregas e pessoas usufruindo de confortos adicionais propiciados pela internet das coisas.
O relatório aponta um paradoxo de crise. “As cidades e os governos subnacionais têm maior capacidade do que os governos nacionais para criar e liderar redes multissetoriais envolvendo vários níveis de governo, setor privado e sociedade civil.” O relatório continua: “Os governos locais e municipais – cada vez mais organizados em redes – agirão em questões internacionais, como mudança climática e migração, ficando à frente dos governos nacionais em alguns casos”, avalia Ian Klaus.
O articulista pondera que o fato de as cidades estarem na vanguarda da ação coletiva e da inovação política não é propriamente uma novidade. Na verdade, o movimento previsto já começa a existir. A Cúpula de Líderes sobre o Clima da Casa Branca, realizado em abril, incluiu vozes de prefeitos. Como as pesquisas emergentes e o Sexto Relatório de Avaliação do IPCC em andamento deixam claro, eles estão enfrentando uma crise climática mais terrível do que se imaginava, junto com uma série de outros desafios que não seremos capazes de prever. O NIC confirma o que muitos líderes urbanos já sabiam: as cidades chegaram à festa global. Mas será tumultuado, caótico e em rápida evolução.
O que surpreende Ian Klaus é o fato de a maior comunidade de inteligência do mundo e com mais recursos reconhecer em uma publicação aberta a abordagem diferente de padrões tradicionais. Íntimo do interior dos sistemas de inteligência, ele considera que o Conselho Nacional de Inteligência (NIC) provavelmente foi mais longe em sua conclusão sobre a liderança da cidade no cenário global do que qualquer governo nacional. Ian Klaus é ex-funcionário do Departamento de Estado e trabalhou com várias plataformas de pesquisa de políticas com foco na cidade, servindo como consultor em questões urbanas globais.
A capacidade de articulação das cidades será necessária para enfrentar os desafios para a governança em todos os níveis. A previsão do cenário político nos Estados Unidos, como para outros países, envolve a perspectiva de um colapso da identidade no nível nacional. Mesmo com dificuldades, as administrações locais podem apresentar melhores condições para reversão do ambiente econômico e social, contaminado pela crise climática.
Pressões das transformações
“Tendências Globais 2040: Um Mundo Mais Contestado” é a publicação prospectiva principal da comunidade de inteligência dos Estados Unidos. Seus autores – especialistas com décadas de experiência e de uma variedade de origens – obtêm informações de mais de uma dúzia de diferentes agências de inteligência dos Estados Unidos e também consultam especialistas externos.
Embora voltados ao público, os relatórios da NIC são amplamente usados no governo federal. Mas eles não são normativos ou prescritivos e, portanto, são interpretados de maneira muito diferente dos relatórios de políticas publicados por organizações sem fins lucrativos, filantrópicas, grupos de reflexão e universidades.
Os analistas de inteligência não descrevem o mundo como deveria ser, nem podem descrever as etapas políticas necessárias para definir o panorama imaginado. Forçados a segurar suas línguas nas recomendações, o documento Global Trends é particularmente valioso para aqueles interessados em descobrir exatamente a melhor forma de se preparar para um futuro muito desafiador.
Praticamente todas as tendências de longo prazo identificadas pelo Conselho Nacional de Inteligência, desde uma crescente classe média urbana até a elevação do nível do mar, têm implicações importantes para as cidades e a vida urbana. Mas o relatório vai além, abordando as cidades e as principais questões em torno urbanização.
Como os relatórios anteriores do Conselho Nacional de Inteligência e relatórios semelhantes publicados pelo Departamento de Estado , o Global Trends 2040 analisa as tendências de urbanização global, prevendo que quase dois terços da população mundial viverá em cidades em 2040. Quase todo o crescimento deve ocorrer no mundo em desenvolvimento. Mas essas amplas análises demográficas são complementadas por uma atenção específica às principais cidades e regiões. É nos contextos urbanos explorados e desenvolvidos, e não em meros números, que o relatório representa uma mudança paradigmática.
Indo além da análise anterior de alto nível, o NIC também considera a urbanização no contexto histórico, apontando as experiências divergentes – como uma pesquisa do Banco Mundial também mostrou – entre os períodos anteriores de urbanização e que agora está sendo experimentado na África e na Ásia. “Mais atenção poderia ser dada à centralidade do desenvolvimento informal em muitas economias do Sul Global e às diversas maneiras como suas práticas estão criando espaços urbanos vibrantes”, avalia o articulista da Bloomberg.
O relatório também considera as necessidades econômicas de longo prazo que as cidades enfrentam enquanto lutam com as mudanças climáticas, migração e segurança alimentar. Para os responsáveis pelas conclusões, as cidades no mundo em desenvolvimento tendem a ter maiores dificuldades. Por essa lógica, é possível imaginar que cidades brasileiras enfrentarão lacunas de financiamento significativas para o desenvolvimento de infraestrutura e adaptação às mudanças climáticas.
Além disso, a urbanização tende a exacerbar as divisões sociais urbano-rurais, enquanto a expansão do papel da governança local e municipal pode minar a coerência das políticas quando as estratégias locais e nacionais para a resolução de problemas divergem. De acordo com Ian Klaus a atenção às finanças urbanas reconhece implícita e explicitamente o papel das cidades como atores essenciais na formação do século XXI. “Essa é uma mudança analítica notável para a comunidade de inteligência dos Estados Unidos e uma mudança radical na história intelectual da urbanização. Nos últimos 15 anos, as cidades passaram de arenas a parceiros em potencial e agora a líderes e implementadores de políticas”, assinala.
O mundo em 2040: cenários
O Conselho Nacional de Inteligência explora cinco cenários futuros. Em um deles, a democracia floresce, enquanto em outro, China e Europa remodelam a diplomacia global. Nos outros três, a competição e o conflito dominam enquanto a ação coletiva em face de desafios compartilhados é reduzido. Outro considera um mundo sem direção, no qual as regras internacionais de comportamento não são mais seguidas, a cooperação global é limitada e a tecnologia não fornece soluções. Em mais um, a projeção é de separação de economias, com consequências terríveis, incluindo perdas financeiras maciças para países e empresas, à medida que as cadeias de abastecimento se rompem, os mercados são perdidos e setores antes lucrativos, como viagens e turismo, entram em declínio”.
A notável proeminência dos desafios urbanos em todos esses cenários significa que as cidades estão mais envolvidas e vinculadas ao restante das descobertas do NIC. Em outras palavras, os líderes das cidades precisam pensar sistematicamente sobre como esses possíveis futuros se manifestarão nas cidades e áreas urbanas. Isso pode ser feito localmente, por meio do contato com organizações, Conselhos de Assuntos Mundiais e grupos de reflexão e universidades locais.
Ian Klaus avalia a possibilidade de adoção de soluções escaláveis, por meio de plataformas, capacitadas a manter fortes conexões com o mundo da política externa. O processo poderá ser feito por meio de parcerias com agendas de pesquisa internacionais com foco urbano que estão sendo desenvolvidas em universidades e grupos de reflexão em todo o mundo. “Tão importante quanto isso, também significa, se o NIC estiver certo, que os líderes da cidade precisam continuar a desempenhar o papel que recentemente estabeleceram para si mesmos na definição desses futuros”, afirma.
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