PF assinala que a flexibilização do comércio de armas pode trazer de volta “uma situação caótica e tornar muito piores os índices de criminalidade”
CARLOS PLÁCIDO TEIXEIRA
Jornalista Responsável | Radar do Futuro
Policial civil, M. G. (ele prefere não divulgar o nome real) está preocupado com o aumento da quantidade de armas em poder de cidadãos comuns na cidade onde atua, no Norte de Minas Gerais. À família e aos amigos ele comenta, reservadamente, que a quantidade de apreensões de armas aumentou assustadoramente na região nos últimos meses. Por enquanto, diz ele, são casos mais simples. Na maior parte dos registros, são proprietários flagrados carregando os seus revólveres legais dentro dos seus veículos. Pessoas com direito exclusivamente de posse, sem autorização para porte.
A família pode respirar aliviada porque a cidade onde M.G. atua tem criminalidade baixa. A região de população pequena, dependente da agricultura, convive com homens que cultuam o desfile com armas à mostra. Mas a desenvoltura dos desfiles é cada vez maior. Velhos sinais de identidade, comuns em algumas localidades do interior, onde persiste um certo coronelismo políticos e as caminhonetes combinam com os símbolos de poder masculino. O que causa maior preocupação do policial civil é que a flexibização do comércio do revólveres, pistolas e rifles pode tornar o ambiente incontrolável e com tensão crescente para quem trabalha na área.
“É cada vez maior o risco de nós, policiais civis, militares e federais, sermos recebidos a bala em operações corriqueiras”, desabafa o funcionário público mineiro. Por exemplo, uma abordagem para conferir documentos pode gerar um confronto. Há uma sensação de proximidade do descontrole. Na verdade, em regiões com maior número de habitantes, os problemas já acontecem mais frequentemente.
No dia 10 de maio, a cidade de Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro, registrou um exemplo das situações que tendem a virar rotina. Um agente da 126ª Delegacia foi baleado durante diligência para cumprimento de um mandado de prisão. A viatura passava por um dos acessos da Cidade Alta, em Cordovil, Zona Norte do Rio, quando foi atacada por criminosos fortemente armados.
Balanço: policiais militares são alvo
Policiais militares são as principais vítimas do armamento e dos desvios que ocorrem do mercado legal para o ilegal. Segundo os levantamentos ofertados para o ano de 2021, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. As mortes ocorridas fora do turno de serviço são as que ocorrem em maior número. Os profissionais de segurança são vítimas de ameaças (75,6% em serviço e 53,1% fora de serviço), são vítimas de assédio moral ou humilhação no ambiente de trabalho (63,5%) e foram discriminados por serem profissionais de segurança pública (65,7% e 73,8% entre policiais militares).
Um artigo de Túlio Kahn, doutor em Ciência Política e Consultor em Segurança Pública, revela que uma minoria de 16% entre os policiais defende a proibição e porte de todas as armas de fogo. O número é até maior do que a outra minoria, de 10,4%, favorável à posse e liberação de armas para toda a população, sem limites de qualquer natureza. Mas a grande maioria, 73,6%, defende uma postura condizente com a legislação atual. Ou seja, permissão para porte e a posse, mas com limites de quantidade de armas e munições, mecanismos de controle e rastreamento de armas, restrição a certos tipos de armamento, etc. Nem liberação completa, nem restrição total. “Diferentes matizes em torno do que a legislação hoje já permite”, assinala o especialista.
Em julho, a Polícia Federal encaminhou pareceres ao Congresso Nacional com um alerta sobre um projeto de lei, em debate no Senado com o objetivo de flexibilizar a compra e o uso de armas de fogo. A alteração no Estatuto do Desarmamento já foi aprovada na Câmara, mas ainda não no Senado. Em seu relatório, a PF assinala que o dispositivo poderá trazer de volta “uma situação caótica” no país, com potencial de “tornar muito piores os índices de criminalidade”.
Mais violência
Enquanto o debate envolve grupos favoráveis e contrários à flexibilização da posse e porte de armas, a indústria de formação de novos atiradores cresce aceleradamente. Quase a metade das 2.061 empresas de formação e entretenimento de atiradores existentes no país hoje foi criada desde 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.
Um levantamento do Instituto Sou da Paz, via Lei de Acesso à Informação (LAI), a venda de munições e cartuchos no Brasil mais que dobrou em relação a 2020: 61,3 milhões contra 28,5 milhões, apenas entre os colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (CACs). O número de lojas para a venda de armas e munições também cresceu assustadoramente. Em um ano foram abertas 620 novas lojas no país.
A liberalização do comércio no Brasil gerou um descontrole na aquisição de armas e o impossível rastreio da origem da munição. “Sou policial civil e a farra da compra de armamento está tão absurda que já tem colegas bolsonaristas mudando de lado porque tá vendo um monte de criminoso conhecido comprando arma de grosso calibre de maneira legal”, diz um internauta na conta do Twitter. Para parte dos integrantes das corporações civil e militar, há um risco crescente de que as abordagens sejam recebidas por pessoas fortemente armadas.
Especialistas em segurança pública garantem que as armas e munições legais e ilegais, que são desviadas e ingressam no mercado do crime, não causam, isoladamente, variações nas taxas criminalidade. Elas tendem a aumentar os homicídios circunstanciais, em bares, boates e no trânsito, por exemplo, e os feminicídios. Mas não afetam necessariamente as dinâmicas criminais nos
estados. No Brasil, quase 80% dos homicídios são cometidos com armas de fogo.
Sobram exemplos ilustrativos das mortes, apresentados diariamente pela imprensa, sobre os efeitos da proliferação de armas na sociedade no aumento das mortes circunstanciais. O homicídio do jovem Ailson Augusto Ortiz, de 21 anos, em Cascavel/PR. Após uma discussão em razão de uma fechada no trânsito, Ailson levou três tiros, ao enfrentar o outro motorista. Segundo investigadores, o autor dos disparos seria CAC e teria arma para prática de tiro desportivo, não possuindo porte de armas de fogo para defesa pessoal. O que se verifica é que a facilidade de acesso e abundância de armas de fogo em determinado espaço faz com que o instrumento seja um catalisador de violência letal.
Este é o momento de toda a história nacional em que existem mais armas nas mãos de cidadãos comuns. Em 2019 e 2020, os brasileiros registraram 320 mil novas armas na Polícia Federal. De 2012 a 2018, o total havia sido de 303 mil. As autorizações concedidas pelo Exército a caçadores, atiradores esportivos e colecionadores de armas também bateram recorde no atual governo — 160 mil nos últimos dois anos contra 70 mil nos sete anos anteriores. O mercado de armas e munições, tanto as de origem nacional quanto as importadas, está extraordinariamente aquecido.
@LeonelRadde
Em resumo