Educadores sociais questionam as narrativas envolvidas na produção de listas sobre as competências do futuro, necessárias para a sobrevivência dos jovens
A decisão da Ford de fechar suas fábricas no Brasil, após 100 anos, deu evidência para o processo de desindustrialização em curso no País, agravado nos últimos tempos. Há seis anos consecutivos, desde a recessão iniciada em 2014, o Brasil vê o número de indústrias no território nacional cair aceleradamente.
Em 2020, o encerramento envolveu 5,5 mil fábricas. Ao todo, entre 2015 e 2020, foram extintas 36,6 mil. Isso equivale a quase 17 estabelecimentos industriais exterminados por dia, segundo um levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) feito para o jornal O Estado de S. Paulo.
Segundo a série histórica iniciada em 2002, até 2014 o número de fábricas crescia, mesmo com a indústria de transformação perdendo relevância na economia diante do avanço dos outros setores. Pouco antes do anúncio da Ford, outras multinacionais já haviam comunicado que fechariam suas fábricas no Brasil, caso da Sony e da Mercedes-Benz, que encerrou a produção de automóveis.
“O processo de desindustrialização coincide com o início do Plano Real, que favoreceu as importações”, avaliava, na matéria do jornal, o economista Fabio Bentes, da Divisão Econômica da CNC, responsável pelo estudo, para quem há os efeitos da baixa produtividade, que não se modernizou”. Faltou destacar, entretanto, que o pouco de política industrial que existia até meados da década passada foi eliminado nos últimos anos.
Competências para que?
Disponível na internet, o debate sobre “Competências para Transformar Futuros”, promovido pelo movimento Teach The Future (TTF Brasil), joga alguma luz sobre o debate necessário, e raramente citado, sobre as críticas às novas exigências do mundo do trabalho. A conversa, a segunda de uma série denominada de “Futuros na Educação”, teve a participação dos educadores sociais João Souza e Rafael Gregório. Ativistas do TTF e de outras iniciativas coletivas, eles destacam a importância de refletir sobre o contexto que, no caso brasileiro, envolve desindustrialização e maior peso de agronegócios, comércio e serviços.
São os espaços onde os jovens serão inseridos. Em um cenário que envolve disparidades econômicas enormes e atrasos em andamento. João Souza lembra da época em que frequentava um curso técnico em manutenção industrial, por volta do ano 2000 e como seus colegas sonhavam com a possibilidade de trabalhar na Fiat. Agora, os jovens envolvidos em seus projetos sociais vivem a possibilidade de inserção por outros caminhos.
No caso, uma das possibilidades é reencontrar competências que estão deixadas de lado diante da tendência de digitalização de tudo. Ele aponta para o efeito positivo da redescoberta, durante a pandemia, de hobbies antigos. Foi um reencontro com a paixão por ferramentas analógicas, como chaves de fenda e equipamentos elétricos. E a aplicação de conhecimentos do técnico. “Compreendi como as habilidades analógicas são tão importantes quanto as habilidades digitais para repensar o futuro das competências”, avalia.
Apropriação de narrativas
O raciocínio de João de Souza tem pontos em comum com a proposta de uma “apropriação das tecnologias pelas comunidades periféricas”, defendida por Rafael Gregório. Pense bem como foi a inserção da informática no final dos anos 1990. Os cientistas da computação chegaram nas escolas e disseram para os dirigentes e professores que eles deveriam usar computadores. A tecnologia definiu as regras e rotinas do uso da informática dentro de sala de aula.
O educador social acredita na necessidade de que as pessoas, em particular os jovens, é claro, entendam quem domina a narrativa na história contemporânea. No caso, são as corporações que estabelecem as regras do jogo do sistema de produção. Sem a análise do discurso e a percepção de interesses, não há como fugir das generalizações, que fazem com que recomendações que interessam às indústrias alemãs, chineses ou norte-americanas tenham o mesmo valor para o mercado brasileiro.
Ou seja, os novos manuais sobre as competências do futuro não levam em conta, necessariamente, o processo em que o setor industrial, criador dos empregos de maior qualificação e remuneração, perde peso na economia brasileira. As 15 habilidades mais importantes para 2025, apontadas pelo último relatório do Fórum Econômico Mundial, podem não ser as mais adequadas para as perspectivas brasileiras. “São características que interessam às empresas e não necessariamente aos trabalhadores”, assinala Rafael.
Entre a teoria revelada pelo fórum econômico Mundial, disseminada à exaustão por consultores na internet em português, e a realidade dos mercados, existe uma grande ironia. Gregório lembra que uma pessoa que tenha se destacado, em algum curso, como melhor aluno por suas competências, poderá desempenhar a mesma função do seu colega, que se saiu como o pior da turma. Ambos como motorista de aplicativos. Esta é uma realidade mais efetiva do que boas intenções propagadas pela internet.
Rafael Gregório tem, como referência, autores contemporâneos, para quem a civilização atravessa uma crise, que cobra reposicionamento dos grupos sociais. Um dos pensadores é Aílton Krenak, líder indígena, ambientalista e filósofo. Segundo ele, “toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é capturada pela máquina de fazer coisas, da mercadoria”. A apropriação das tecnologias tende a possibilitar a reversão desse fato, pois possibilita à comunidade definir os melhores critérios de uso dos recursos.
Enfrentar o desalento
Ao contrário do que imaginamos no dia a dia, os jovens pensam no futuro, sim. O problema é que muitos deles estão desalentados. Gregório alega que pesquisas recentes mostram a desesperança crescente com relação ao futuro. Muitos pensaram neste último ano em deixar de estudar, por exemplo. Tão ou mais grave, há uma tendência de que as pessoas deixem de acreditar na educação como força capaz de mudar as perspectivas individuais de melhora de condições de vida.
“Não só a pandemia trouxe uma série de desafios e retrocessos, mas a economia e a falta de investimentos e continuidade em projetos sociais criam uma realidade muito difícil de se viver”, diz o educador. A visão da realidade é essencial para a apropriação dos discursos, considerando que a principal narrativa da educação escolar está pautada no diploma, na imagem do trabalho e alcançar uma vida plena.
A análise leva ao questionamento sobre “como podemos fazer a relação entre a realidade da maior parte dos jovens brasileiros, competências para o futuro e imagens de futuros”. A aposta de Gregório inclui a “alfabetização de futuros”, um conceito voltado à fomentação de uma cultura voltada à compreensão e intervenção sobre o cenário onde todos viveremos, do ambiente de trabalho à produção culturais e interação das pessoas. É uma forma de ampliar os horizontes, incentivar a imaginação e a criatividade, deixando espaço para futuros plurais.
Veja o debate:
Futuros na Educação: Competências para transformar futuros
Em resumo