Carlota Boto analisa os impactos da implementação, sem as devidas precauções, de recursos digitais no aprendizado dos estudantes
Julio Silva
Jornal da USP
O governo de São Paulo anunciou um novo projeto que pretende utilizar recursos de inteligência artificial (IA) para a preparação de aulas e atividades escolares a partir do segundo semestre deste ano. O projeto, que ainda está em estágio inicial, impactará alunos dos ensinos fundamental e médio da rede pública estadual. Carlota Boto, diretora da Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São Paulo, organizadora e uma das autoras do livro Cultura Digital e Educação (2023), explica quais os riscos do uso dessa ferramenta na preparação das aulas e qual a importância do professor nesse processo.
A especialista explica que é terminantemente contra a implementação desse projeto e afirma que não observa benefícios no uso das inteligências artificiais no ensino público. Ela conta que essas ferramentas podem causar um efeito negativo no aprendizado dos estudantes, já que, muitas vezes, elas não articulam os dados de maneira coerente e podem divulgar inclusive informações equivocadas sem a devida checagem.
Segundo a diretora, cada disciplina do ensino básico possui um modo de existir que corresponde a um acervo cultural historicamente acumulado e essa lógica, que é intrínseca à construção da disciplina, constitui um corpo que não será redesenhado pela tecnologia artificial. Por isso, segundo ela, a produção de aulas precisa ser realizada por pessoas físicas e, de preferência, por professores.
“A rede de ensino deve ter um currículo, mas a organização de cada aula é tarefa do professor. Para isso, deve haver investimento na formação desse profissional e ele precisa ser bem pago, porque é dele a tarefa de transformação do currículo na proposição didática de uma aula”, conta.
Processo automatizado
De acordo com Carlota, o uso das ferramentas de IA nas aulas pode automatizar o ensino e desconsiderar os processos críticos e criativos envolvidos na aprendizagem, tanto do professor quanto do estudante. Ela reforça a importância da construção de um currículo que permita o processo de debates e diálogos dentro das salas de aula, a fim de que a formação do jovem seja acrescida da possibilidade de analisar e construir pensamentos críticos sobre variados assuntos.
“É preciso ter cautela para que essa inteligência artificial não se transforme em um Oráculo de Delfos, através do qual você busca irracionalmente qualquer conteúdo como se esse conteúdo não fosse passível de ser criticado, revisto e refutado. É preciso que haja muita precaução, porque a aula é algo sério e que precisa ser preparada por um professor”, discorre.
Como explica, a escola moderna foi firmada e se estruturou no Ocidente a partir da expansão da cultura letrada e da tipografia, acompanhadas do surgimento dos livros. Ela afirma que esse modelo de escola precisa ser preservado a partir do momento em que é parcialmente substituído pela cultura digital. “É preciso que essa análise seja feita nas universidades e redes públicas com os professores em sala de aula dialogando e estabelecendo critérios para confluir essa transposição didática dos conteúdos digitais para a ação docente. Isso é uma coisa que só os professores podem fazer, não vir da Secretaria de Educação e muito menos ser um decalque da inteligência artificial.”
Emprego dos professores
Conforme a diretora, o uso das inteligências artificiais, assim como em várias outras profissões, pode representar um risco grave aos professores, os quais podem se tornar figuras descartáveis nas escolas, caso comecem a surgir demissões e afastamento de profissionais de suas funções. Ela, contudo, reforça que todas as novas tecnologias podem ser úteis, desde que sejam usadas conscientemente e aliadas ao trabalho dos professores.
Carlota diz que a escola moderna surgiu com a cultura impressa, que foi responsável pela construção de um acervo cultural que a escola transmite desde o século 16. Ela esclarece que os profissionais da educação precisam se valer da educação digital de uma maneira criativa e organizada para não se distanciar dos benefícios que a cultura impressa trouxe. “Não adianta pensar em alfabetizar uma criança via computador se não alfabetizarmos essa criança no caderno, se não alfabetizamos essa criança com a ajuda do livro. Então, a cultura digital pode ser uma aliada, mas ela precisa ser uma aliada inteligente”, aponta.
Pobreza digital
A docente destaca ainda que as diferenças socioeconômicas da população brasileira impedem que todos os estudantes tenham acesso igualitário às ferramentas digitais. Ela conta que a pandemia de covid-19 explicitou a falta de investimento público dos governos em relação à internet banda larga nas escolas, por isso, grande parte dos alunos tem dificuldade em acessar os conteúdos digitais.
Um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2021, mostrou que cerca de 4,1 milhões estudantes da rede pública não tinham acesso à internet, número que representa 12% dos alunos totais do País, com as regiões Norte e Nordeste sendo as mais afetadas. O celular, aparelho mais utilizado para acesso aos recursos digitais, só estava disponível para 64,8% dos alunos da rede pública. A pesquisa mostrou ainda que a cada 20 alunos sem acesso à internet, 19 são de escolas públicas.
“O fato é que temos que nos debruçar sobre essa cultura digital como política pública. No entanto, as políticas públicas voltadas para incorporação da tecnologia digital não significam adesão imediata à inteligência artificial, pois não há pesquisas suficientes para nos assegurar quais são os benefícios dessas ferramentas”, finaliza.
*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira
Em resumo