Carlos Teixeira – Radar do Futuro
Jornalista e futurista
“A gente precisava priorizar o lado humano das coisas”. É com alguma dose de filosofia do cotidiano e muita preocupação que o tomador de conta e lavador de carros José Santil Agripino, de 55 anos, olha para o futuro. Filosofar é necessário diante da constatação de que a tecnologia avança, direta ou indiretamente, sobre atividades que exigem baixa qualificação. É o caso do sistema de estacionamento rotativo digital, que entrou em funcionamento em Belo Horizonte (MG) no final de junho.
A sobrevivência corre risco, e abre espaço para novas relações com o tempo. Substituir trabalhos por aplicativos é uma tendência que vai afetar o mundo da informalidade do mercado onde pessoas buscam sustento. Com reflexões sobre o agora e o amanhã, Santil reage à mudança do sistema de controle do uso de vagas de estacionamento nas ruas da capital mineira, do papel para o digital.
Rotativo digital
A iniciativa do poder público, sob a lógica da busca pela eficiência, preocupa pessoas como ele, que encontram a sobrevivência nas ruas das cidades brasileiras. A adoção da tecnologia do rotativo digital, controlado pelo smartphone, com uso de aplicativos, extingue os talões faixa azul em papel e parte das rendas formais e informais do grupo apelidado socialmente de “flanelinhas”, inclusive os cadastrados oficialmente em órgãos públicos.
Quem vive da atividade já diz que as perdas começaram. Além dos tomadores de conta, que facilitam a vida do proprietário de carros com a venda de talões com o sobrepreço de alguns reais a mais, bancas de revistas e gráficas são algumas das funções que também vão sentir o impacto da novidade.
“O rotativo digital vai provocar a exclusão do trabalhador”, avalia José Santil, que é um dos articuladores e presidente da Associação para Cooperação dos Trabalhadores Autônomos Lavadores, Guardadores e Manobristas de Veículos do Estado de Minas Gerais (Ascoopertaimg). Ele e os seus companheiros, receosos do que virá pela frente e, sem tempo a perder, já começaram a tomar iniciativas para tentar reduzir os prejuízos do futuro. Com renda que raramente passa de dois salários mínimos, a associação tem mais de 2 mil inscritos.
Reivindicações
Em 29 de junho, apenas dois dias após a adoção do rotativo digital, José Santil já participava, como presidente da Ascoopertaimg, de uma audiência pública na Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte. Em reuniões realizadas a partir de então, a Associação desenvolveu pauta de reivindicações, que será encaminhada à Prefeitura de Belo Horizonte e aos vereadores.
A lista inclui a possibilidade deles venderem os créditos de estacionamento diretamente para os proprietários dos veículos. Ou criar um talão social que possa ser utilizado alternativamente em estacionamentos. Ou mesmo, obter o acesso a pontos de energia onde possam conectar aspiradores para melhorar a limpeza de carros, que será a fonte de renda mais importante deles.
Profissão regulamentada
Lavar e vigiar carros é o ofício definitivo de José Santil. Ele não está ocupando um lugar eventual, ao contrário de milhares de outras pessoas que vão para as ruas de forma temporária, enquanto não conseguem um emprego ou outro tipo de função remunerada. Dos 55 anos de vida de José Santil, 45 anos foram passados na mesma região da rua Uberaba, vizinha ao Hospital Felício Rocho, em Belo Horizonte.
Inicialmente, lavando os carros de proprietários de Fuscas, Brasílias, Opalas e Corcéis. Conviveu com os tempos em que pacientes chegavam em Fiat 147. O modelo começou a ser fabricado em 1974. Tempos em que médicos mais poderosos tinham o Gálaxi, carro de luxo da Ford.
Quando ele começou, ainda como criança, em 1971, o sistema de controle das vagas disponíveis ainda não existia. O estacionamento rotativo pago em BH foi criado pela Lei 1.410, de 9 de novembro de 1967, regulamentada pelo Decreto 2.388, de 25 de agosto de 1973. A implantação de áreas com exigência do rotativo teve início em 1976.
A profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores foi reconhecida pela Lei Federal n.º 6.242/75 e se encontra na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO/2002), sendo precariamente regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 79.797/77.
Lutas da classe
Desde cedo o guardador e lavador de carros demonstrou um engajamento na defesa de interesses da categoria. Em 1993, ajudou a criar o sindicato, do qual se afastou sob a alegação de que a entidade não atua ativamente pelos trabalhadores. “Fui responsável pela proposta de criação de uniformes para os lavadores em 1997”, conta José Santil, que preserva a preocupação em manter uma imagem favorável do profissional. O que inclui a proposta de jamais pressionar os donos dos carros que vão ocupar as vagas.
“A população apoia o nosso trabalho”, acredita o líder dos guardadores e lavadores de carros. Como resultado, ele assegura que a maior parte dos motoristas dá gorjetas de boa vontade. Na prática, há uma convergência de interesses entre proprietários e os tomadores de conta. É o que está em jogo, de verdade.
Ou melhor, há uma relação que tanto beira à parceria quanto pode chegar à rejeição pura e simples, reforçada tanto pelo senso comum individualista quanto pelas prioridades públicas e de setores da sociedade pouco sensíveis às questões da desigualdade social que predomina no País.
O discurso público
O poder público dissemina a ideia de que para a sociedade o rotativo digital gera apenas ganhos. Em entrevistas públicas, o diretor-presidente da BHTrans, Célio Bouzada, enaltece o papel saneador da mudança que permitirá, por exemplo, uma fiscalização eletrônica. Combate é a palavra que ele utiliza para definir a relação entre o órgão público e os trabalhadores. “A empresa espera que a adoção do método possibilite um combate mais efetivo aos flanelinhas, que burlam os revezamentos de vagas”, diz o executivo em entrevistas publicadas pela mídia tradicional. Como se a burla ao sistema fosse de interesse exclusivo dos flanelinhas.
José Santil acredita que apenas a BHTrans e umas poucas empresas privadas vão se beneficiar do novo sistema. “Será uma transferência dos recursos para uns poucos”, avalia. E mais que isso até, haverá o agravamento do quadro de crise, no momento em que o desemprego é elevado e o processo de mobilidade social vai sendo revertido.
Um dos filhos de Santil ilustra o momento e a necessidade de priorizar questões sociais. Técnico em radiologia, recentemente perdeu o emprego no hospital vizinho ao local de trabalho do pai. Agora trabalha na rua, lavando e ajudando os motoristas a encontrar vagas.
“É necessário levar em conta a inclusão social possibilitada pela atividade”, reafirma José Santil. O esforço dos 45 anos como flanelinha possibilitou a ele dar formação para os três filhos — além do técnico em radiologia, as filhas se formaram em educação física e pedagogia.
Focado em defender a categoria, ele teme pelo futuro das próximas gerações diante do encurtamento das alternativas, que também promete eliminar atividades como a de trocadores de ônibus, frentistas, ascensoristas de elevadores e operadores de máquinas sob o argumento de que são funções que podem ser melhor executadas por máquinas.
“A questão dos flanelinhas, embora pujante, ainda não mereceu o tratamento sério e comprometido por parte das autoridades, sintetiza o cientista social Humberto Leandro de Melo e Sousa, em um estudo sobre “O flanelinha no cenário urbano de Belo Horizonte”.
Para ele, as iniciativas são meramente focalizadas – como o programas de lavadores desenvolvido pela Administração da Regional Centro-sul – mas não constituem um enfrentamento sistêmico do problema da exclusão social, revelando preocupante comodismo por parte do Poder Público, no sentido de controlar a vulnerabilidade social imposta, ao não apresenta soluções que resgatem a dignidade e a cidadania dos trabalhadores de rua”.
O problema é que iniciativas tecnológicas como essa do estacionamento rotativo digital desconsideram que as funções de baixa qualificação são necessárias para garantir a sobrevivência de milhares — milhões — de pessoas.
Em resumo