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Privilégio da servidão: quando o jornalista concorda em ser escravo

Com a precarização do trabalho, jornalistas têm o privilégio da servidão nas redaçoes da imprensa comercial, mesmo conscientes da super exploração

CARLOS PLÁCIDO TEIXEIRA
Jornalista Responsável | Radar do Futuro

A precarização do trabalho dos jornalistas ganha impulso extra nestes tempos em que até mesmo a Rede Globo sai da posição imperial para realizar demissões em massa e obriga os seus “colaboradores” a assumir novas funções para garantir os seus empregos. Agora, trabalhadores do maior conglomerado de comunicação do País carregam o “Kit Mojo” – um conjunto de equipamentos de baixo custo para transmissões em tempo real. A parafernália é formada por smartphone, tripé, estabilizador, luz e microfones.

A reestruturação interna, destinada a cortar gastos, surpreendeu jornalistas, acostumados a ter o suporte de equipes para o desempenho de suas atividades. Repórteres se conformam, agora, em usar aparelhos celulares para se filmar durante participações ao vivo. O trabalhador multimídia faz sozinho as funções de uma equipe inteira de reportagem, antes composta por três pessoas: repórter, repórter cinematográfico e auxiliar.

Na sociedade pós-industrial, quem sobrevive nas redações da imprensa tradicional, com carteira assinada, pessoa juridica, free lancer ou estagiário tende a se perceber como alguém de “sorte”. Serão portadores do “privilégio da servidão”, conceito descrito pelo sociólogo Ricardo Antunes, um dos principais estudiosos do mercado de trabalho. “Estamos presenciando a constituição e a expansão de um novo proletariado de serviços”, diz o especialista.

Dilema do chantageado

Kit Mojo: o tudo em um do trabalhador da imprensa

Privilégio é, no caso do mercado de trabalho da informação, agradecer aos céus por ser um jornalista (mal) remunerado e ser obrigado a registrar imagens do entrevistado e de si mesmo. Além de ser submetido à perda de direitos legais, deve produzir textos, vídeos e áudios, revisar e colocar títulos e subtítulos, fotografar e publicar as imagens com legendas. Também vai providenciar a veiculação. O cenário é o mesmo de quem trabalha em rádio, meios impressos e portais de notícias.

Servidão é o dilema de quem é historicamente chantageado pelo sistema. É como o jornalista consciente de que está sendo vítima de super exploração. Entre profissionais experientes, em especial, a impotência predomina com sentimento de perdas afetivas. O velho jornalismo está morrendo. Eles vivenciaram outros tempos. Enxergam no cenário atual o esvaziamento da qualidade da informação. “O que vale hoje é a fofoca, a obrigação de gerar cliques”, reclamam.

No X, ex-Twitter, o advogado Dayvson Moura ganhou notoriedade ao compartilhar a foto que ilustra esta matéria, de uma repórter da InterTV, afiliada da Globo, segurando uma câmera enquanto trabalhava. “Gente, isso não pode ser normalizado no jornalismo. A jornalista agora tem que ser operadora de câmera e repórter ao mesmo tempo?”, lamentou. A publicação foi compartilhada por diversas páginas nas plataformas, atingindo a marca de mais de 3,7 milhões de visualizações.

O inconformismo ao ver a transformação da produção dos meios de comunicação tende a ser crescente. Bons assuntos não merecem destaque, ao contrário de assuntos superficiais. “Há aumento das funções sem ao menos algum retorno de remuneração, que ajude a pagar tratamentos de saúde no futuro por conta do excesso de trabalho”, dizem.

No site Contraponto Digital, da PUC de São Paulo, o jornalista e professor José Arbex, critica diferenças entre o jornalismo dos anos 70 e de hoje. Ele avalia que o sistema é montado para impedir o pensamento crítico do público, com as notícias rápidas e superficiais publicadas no Instagram que dispensam qualquer reflexão sobre o assunto retratado, pois logo depois a pessoa já se esqueceu do que leu, pois em seguida já é bombardeada com mais informações.

Batalha ideológica

“Síndrome de Estocolmo”, o comportamento do sequestrado que passa a defender o seu sequestrador, também define a relação estabelecida na relação entre os trabalhadores de imprensa e seus empregadores, no mercado onde o espírito do tempo — zeitgeist — do bom jornalismo se resume a bater escanteio e cabecear na área para fazer o gol.

No grupo dos sequestrados estarão os profissionais que incorporam a crença de que a imprensa está passando por um processo de modernização. “Para sobreviver no futuro, todo jornalista será multimídia”, dizem os gurus do otimismo, para satisfação dos empregadores. Entre repórteres e editores sobreviventes, há muitos que têm dificuldade em perceber que o verdadeiro nome do modelo de produção é precarização.

Voluntariamente ou não, grande parte dos jornalistas se adapta às condições impostas pelas empresas empregadoras, enquanto funções são extintas e direitos são eliminados. “Adapte-se ou morra” tende a ser o comportamento de quem não enxerga alternativas diante das mudanças que são incorporadas com naturalidade pela própria categoria.

Como assinala a matéria do Contraponto Digital, “hoje, mais do que nunca, o que importa são números grandes, deixando a qualidade em escanteio. A sociedade neoliberal-capitalista desvalorizou o tempo, a história, a construção, o simbólico e a ética”. O texto de qualidade demandado pelas empresas jornalísticas é aquele capaz de gerar o maior número de acessos.

Conformismo ou resistência: o que fazer?

Há alternativas? Antes de mais nada, para quem tem o privilégio de um trabalho formal, dentro de redações da mídia tradicional, é necessário entender que o processo de precarização não será revertido. O mercado vive o seu novo normal. O sociólogo Ricardo Antunes prevê, de forma geral, que o trabalho será mais desregulamentado, mais informalizado, mais intensificado. Tudo o que puder ser automatizado, será. Os laços de solidariedade e de ação coletiva serão enfraquecidos. Será o trabalhador a serviço das máquinas digitais.

O trabalhador alheio ao futuro, que imagina que não será afetado, se engana. O “jornalista multimídia” também será atropelado com o surgimento de novas tecnologias e, inclusive, com a informalidade das relações de trabalho. As empresas buscam novos modelos de negócios, onde as tecnologias darão as cartas e os vínculos humanos serão cada vez mais fracos.

O aumento da precarização só poderá ser combatido com o fortalecimento de ações coletivas e com a apropriação das tecnologias pelos profissionais. Jornalistas, assim como outras categorias, devem entender que não será no ambiente do capitalismo do século 21 que vão ocorrer as transformações que resgatem o valor da produção de informações de qualidade.

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