Valéria Said Tótaro *
Mais de 80 bilhões de novas peças de roupas são produzidas todos os anos, cerca de 400% a mais do que há duas décadas, segundo dados do documentário The True Cost (2015), com a indústria do fast fashion liderando não só esse número colossal de produção de roupas (e de lixo têxtil), mas também ranqueando muitas marcas mundialmente conhecidas por seus impactos negativos para o meio ambiente e pelos aviltamentos aos direitos humanos e trabalhistas.
São questões emblemáticas que precisam ser mais discutidas, em profundidade, pela imprensa, pelo empresariado e por instâncias governamentais, como políticas públicas de comunicação. Essa reflexão tem como ponto de partida a quarta maior tragédia da indústria da moda ocorrida em 2013, em Bangladesh, quando o edifício Raza Plaza, que abrigava cinco fábricas de confecção de roupas, desabou e matou mais de 1.100 trabalhadores, deixando outros 2.500 feridos, em sua maioria mulheres jovens e crianças. Ativistas pelos Direitos Humanos tiveram que pesquisar as etiquetas de roupa pelos escombros para provar quais marcas foram corresponsáveis pela tragédia, daí a premência de se repensar a cadeia produtiva e de suprimentos da moda e também uma urgente política de transparência e de prestações de contas por parte das marcas.
De fato, após essa tragédia e de iniciativas como o movimento global Fashion Revolution, que desde 2014 incentiva mais transparência, sustentabilidade e ética na indústria da moda, grandes marcas ícones do fast fashion estão revendo suas políticas de comunicação com o público a respeito de suas práticas sociais e ambientais com fornecedores e trabalhadores. Por exemplo, no início de 2018, 64 marcas, entre as quais a espanhola Zara, a sueca H&Me a holandesa C&A, cujas etiquetas estavam nos destroços do Rana Plaza, comprometeram-se a tornar sua produção o mais sustentável possível até 2020 (Global Fashion Agenda, 2018), além de se esforçarem para publicizar a rastreabilidade de suas roupas, isto é, a divulgação da lista de fábricas, instalações de beneficiamento e fornecedores, bem como mitigar questões relacionadas ao “dumping social” – precarização do trabalho com o objetivo de reduzir custos e aumentar a competitividade no mercado – e impactos ambientais, conforme o Índice de Transparência da Moda de 2017, produzido pelo Fashion Revolution, em parceria com um comitê pro bono de especialistas do setor.
Esse Índice de Transparência, que pontua as 100 maiores marcas e revendedoras globais de moda, com faturamento anual de pelo menos 1, 2 bilhão de dólares, classificando-as de acordo com a quantidade de informações que compartilham sobre governança, rastreabilidade, política de comunicação e de incentivo à organização sindical, revela duas análises para o propósito deste artigo: a) as marcas precisam ser transparentes sobre suas políticas e procedimentos, além de focar mais nos resultados reais de seus esforços para gerenciar e melhorar os direitos humanos e trabalhistas e os impactos ambientais.
Em outras palavras, é dever das marcas dar acesso a seus consumidores e público em geral às seguintes informações: quais são as políticas sociais e ambientais da marca? Como a marca está colocando as políticas em prática, em especial, as políticas com os fornecedores? Como a marca decide quais problemas deve priorizar? Quais são as metas futuras da marca para melhorar seu impacto ambiental e social?
Mas para ser uma comunicação transparente é necessário, por exemplo, que as informações disponibilizadas sejam mensuráveis e o progresso das metas ser relatado pública e anualmente, pois, sem essas referências, fica difícil saber se as políticas e os procedimentos das marcas são de fato eficazes e se realmente trazem melhorias para as pessoas que fazem nossas roupas.
E a outra constatação apontada pelo relatório: b) ainda há muitas informações cruciais sobre as práticas da indústria da moda que permanecem escondidas, particularmente, quando se trata do impacto tangível das marcas na vida dos trabalhadores da cadeia de suprimentos e no meio ambiente.Ou seja, pauta para a imprensa investigar e publicar informações acuradas sobre essas atividades ainda ocultas na indústria fashion, denunciando toda forma de violação aos princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, consoante o inciso I do artigo 6º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros,e, assim, contribuir para formar cidadãos e consumidores cada vez mais conscientes para exigirem de marcas e de governantes responsabilidades e soluções para os problemas graves da indústria da Moda. Aqui, cita-se o aplicativo brasileiro gratuito, Moda Livre, desenvolvido pela ONG Repórter Brasil que, desde 2013, em parceria com o Ministério do Trabalho, avalia as medidas praticadas por marcas e varejistas de roupa para monitorar as condições de trabalho de seus fornecedores, a fim de combater o trabalho escravo contemporâneo.
É uma ferramenta tecnológica que tem contribuído para uma cultura de consumo de moda consciente no Brasil, com a divulgação pública de suas avaliações, apesar dos obstáculos de boa parte das empresas do setor, a exemplo das 100 marcas mundiais do fast fashion selecionadas para serem analisadas pelo Índice de Transparência da Moda, 52 não responderam ao questionário ou negaram a oportunidade de darem informações de interesse público solicitadas. Por isso, uma cobertura jornalística mais crítica em moda ética e sustentável pelas editorias é um imperativo categórico para os consumidores se conscientizarem do verdadeiro custo social e ambiental das roupas, para além das etiquetas, pois, se para Sócrates, nas palavras de Platão,”a vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”, a moda sem reflexão não vale a pena ser investigada.
É certo que as avaliações do Índice de Transparência referem-se a um contexto mundial em que o fast fashion, principalmente em países como Bangladesh, Vietnã e Camboja, não reflete cartesianamente a realidade da moda rápida na indústria brasileira, a saber: o Brasil é, ainda, a última cadeia têxtil completa do ocidente, produz cerca de 5 bilhões de peças de vestuário ao ano, sendo que 85% do que se consome no país vêm de fábricas instaladas em território nacional (Abit, 2017), com distribuição fragmentada das marcas, viés abordado pelo economista Enrico Cietta, em seu artigo Fast-fashion: uma oportunidade para as empresas brasileiras? (2010). O que não implica desconsiderar as avaliações desses indicadores para potencializar práticas de sustentabilidade e direitos sociais e trabalhistas na indústria da moda nacional, por meio de mais transparência na comunicação institucional das marcas e subversão jornalística na crítica do setor, porque a Moda, da forma como a conhecemos hoje, está obsoleta, pontifica a pesquisadora e trendhunter holandesa Lidewij Edelkoort, que em 2015 impactou o mercado da moda com seu Manifesto Anti-Fashion. Enfim, urge uma revolução por uma Moda melhor e diferente do que tem sidopara os seres vivos e para o planeta: eticamente sustentável e transparente, socialmente mais justa e responsável, além de economicamente viável e inclusiva. Mas é preciso também uma imprensa mais preparada para coberturas críticas em moda ética e sustentável.
*Jornalista (PUC-MG), articulista, professora de Ética, Teorias do Jornalismo e pesquisadora de Moda. Mestra em Estudos Culturais Contemporâneos (FUMEC) e pós-graduada em Gestão Cultural (UNA). Presidente da Comissão de Ética e Liberdade de Imprensa do SJPMG. Desde 2015, é parceira do Fashion Revolution BH. Faz palestras sobre “Moda, Jornalismo, Políticas Públicas Culturais e de Sustentabilidade” e “Moda, Jornalismo e Direitos Humanos”. Organizou e mediou o primeiro debate público em Minas Gerais sobre “Cobertura jornalística em Moda Ética e Sustentável”, na Casa do Jornalista/SJPMG, em 2017. É defensora da Filosofia da Moda como disciplina obrigatória nas estruturas curriculares de escolas e faculdades de Design de Moda e está escrevendo os últimos capítulos do livro “Vintage Slow Fashion: moda sob viés político e filosófico”.
Contato: valeriasaid@hotmail.com.
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