quinta-feira, novembro 21, 2024
25.8 C
Belo Horizonte

Futuro da carne de laboratório: pesquisadores avançam no desenvolvimento de produtos

O holandês Mark Post foi o responsável pelo primeiro hamburguer in vitro

Produtos alternativos, à base de vegetal, já ganham espaço no mercado, enquanto a carne de laboratório ainda é uma promessa.

Revista Fapesp

Maior exportador mundial de carne bovina, o Brasil dá os primeiros passos na corrida por um mercado que tem atraído dezenas de milhões de dólares nos últimos anos, o de produtos alternativos à carne, mas com as mesmas características sensoriais. Existem duas rotas para se alcançar esse objetivo: a produção de carne em laboratório a partir de células-tronco de animais, também conhecida como carne limpa ou in vitro, e a criação de um produto à base de proteínas vegetais que emule a carne vermelha.

Em maio de 2019, o empreendedor carioca Marcos Leta colocou no mercado o Futuro Burger, um hambúrguer vegetal que promete ter a aparência e o gosto de carne bovina. Fundador dos sucos Do Bem, o empresário é dono da foodtech Fazenda Futuro, responsável pela novidade, vendida a cerca de R$ 17 a bandeja com duas unidades.

Leta segue o caminho trilhado por empresas estrangeiras que já comercializam alternativas vegetais ao produto de origem animal, conhecidas como plant-based meat — carne produzida à base de plantas. Os ingredientes do Futuro Burger são formados por proteína isolada de soja, de grão-de-bico e de ervilha. A cor avermelhada é conferida por suco de beterraba.

Segundo Leta, não é só na aparência que o alimento é parecido com a carne de origem animal, mas também no sabor, textura e aroma. Uma língua artificial, equipamento eletrônico composto de sensores gustativos que imitam o funcionamento do órgão humano, foi utilizada no processo. “O valor nutricional também é muito similar”, diz Leta. Esse resultado foi obtido por meio da análise, com a ajuda de inteligência artificial, das melhores combinações de proteínas e lipídios de origem vegetal.

Pioneiro
O Futuro Burger é o primeiro hambúrguer vegetal fabricado no país que emula carne vermelha
Ingredientes
A base do produto é formada por proteína isolada de soja, grão-de-bico e ervilha
Aparência
Sua cor avermelhada, imitando sangue, é conferida pela adição de suco de beterraba
Valor nutricional
Com ajuda de inteligência artificial, a empresa pesquisou a melhor combinação de proteínas e lipídios
Mercado em alta
Nos Estados Unidos, a venda de produtos de origem vegetal similares à carne chegou a US$ 670 milhões no primeiro semestre de 2018
Carne limpa
Além de hambúrgueres veganos, outra rota para criar novos produtos é investir na fabricação de carne a partir de células-tronco de animais

Além dos vegetarianos, o objetivo é atingir quem busca se alimentar de forma ecologicamente sustentável. Estudo divulgado pelo Observatório do Clima, em 2016, mostrou que o setor agropecuário responde por 69% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil. “Queremos mostrar que é possível revolucionar a indústria alimentícia sem gerar impactos negativos no ambiente”, destaca Leta.

Durante o projeto, a empresa teve consultoria da organização norte-americana The Good Food Institute (GFI), especializada no desenvolvimento de proteínas alternativas. “Trabalhamos para criar um sistema de alimentos mais sustentável, saudável e justo. Nosso time de cientistas, empreendedores e especialistas em políticas públicas atuam para que a indústria de alimentos passe a usar produtos feitos de plantas ou de células de animais”, explica Felipe Krelling, coordenador de Inovação e Pesquisas do GFI no Brasil.

Novidade no Brasil, o hambúrguer vegetal que imita carne bovina existe há três anos nos Estados Unidos. A Beyond Burger foi a primeira empresa a ter seu hambúrguer à base de plantas vendido em redes de supermercados naquele país. Este ano, tornou-se a primeira fabricante de carne vegetal com ações na bolsa norte-americana Nasdaq. Além de hambúrguer, ela vende carne moída e salsicha preparadas mediante uma combinação de fontes proteicas vegetais.


Já a startup californiana Impossible Foods deu um passo além. A cor vermelha de seu hambúrguer vem de uma proteína similar à hemoglobina, produzida por engenharia genética. Os pesquisadores da empresa usam um componente da hemoglobina, o grupo heme, que confere a cor vermelha de carne crua e o cheiro característico exalado durante o cozimento. Raízes de plantas leguminosas têm o grupo heme em uma proteína de estrutura e função muito semelhantes à hemoglobina, a leg-hemoglobina.

Com base nesse conhecimento, os cientistas da Impossible Foods criaram um método de produção em alta escala do grupo heme, extraindo-o de raízes da soja. Por meio de engenharia genética, eles modificaram a levedura Pichia pastoris para que ela produzisse leg-hemoglobina de soja e a cultivaram em fermentadores para multiplicar a proteína.

Hambúrguer in vitro

Os empreendedores que investem no cultivo de células-tronco de bovinos para criar carne sintética, também chamada de cell-based meat — carne feita de células –, têm um argumento ainda mais contundente para atrair os amantes de um bom bife: o que eles fazem não é simplesmente algo parecido com carne, mas a própria carne. O primeiro hambúrguer in vitro nasceu na Universidade de Maastricht, na Holanda, a partir das pesquisas do fisiologista Mark Post.

Os estudos se iniciaram em 2008 e o resultado foi apresentado cinco anos depois durante uma coletiva de imprensa realizada em Londres. Naquela ocasião, três pessoas que provaram o hambúrguer – o próprio Post e dois especialistas em gastronomia – concordaram que a carne estava um pouco seca e pobre em sabor, devido à falta de gordura na composição, segundo o jornal The New York Times.

O processo desenvolvido por Post parte da extração de células-tronco bovinas de um fragmento de tecido muscular do animal. Essas células indiferenciadas multiplicam-se em um meio de cultura contendo nutrientes e fatores de crescimento, transformando-se em fibras musculares. Cerca de 20 mil finas tiras de tecido muscular combinam-se para formar um hambúrguer com cerca de 140 gramas. A produção em escala industrial será feita em um biorreator.

O hambúrguer holandês custou € 250 mil (R$ 1,1 milhão), financiados principalmente por Sergey Brin, cofundador do Google. A fim de colocar o produto no mercado, o pesquisador criou a empresa Mosa Meat, nascida como uma spin-off da Universidade de Maastricht. Em julho de 2018, para continuar o desenvolvimento do produto e iniciar sua comercialização, a startup captou € 7,5 milhões do Bell Food Group, líder no mercado de carnes na Suíça, e da holandesa M Ventures.

Engenharia biomédica

No final de 2018 foi a vez da israelense Aleph Farms anunciar que criou o primeiro bife cultivado em laboratório. Didier Toubia, CEO da empresa, contou para Pesquisa FAPESP que a decisão de pesquisar carne cultivada a partir de células animais surgiu em 2016. O projeto se concretizou na Faculdade de Engenharia Biomédica do Instituto de Tecnologia de Israel (Technion).

O custo do protótipo, uma pequena tira de bife de algumas dezenas de gramas, foi de US$ 50, valor ainda bastante alto quando comparado ao da carne vendida em açougues, mas um avanço em relação ao despendido para a produção do hambúrguer de Maastricht. A novidade deve chegar ao mercado em até cinco anos.

O processo de produção de um bife in vitro é mais complexo e requer que as células se organizem de forma tridimensional (3D), ganhando volume e, consequentemente, espessura. Para isso, é necessário colocá-las em uma estrutura que serve como suporte denominada scaffold (andaime), que normalmente é produzida a partir de colágeno, de origem animal. Mas para fabricar carne limpa é importante que não existam insumos animais nem procedimentos vinculados a eles. Esses pré-requisitos têm estimulado o surgimento de empresas que apresentem novas tecnologias. Uma das startups criada para fornecer scaffolds à base de plantas a essa indústria é a brasileira Biomimetic Solutions, uma spin-off nascida no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG).

pesquisadora usa mcroscopio para realizar pesquisa
A empresa mineira Biomimetic Solutions fornece a base vegetal para a produção de carne

“Criamos um polímero sintético à base de plantas. Somos uma das primeiras empresas no mundo especializada na produção de scaffolds com foco na produção de carne limpa”, afirma Lorena Viana, mestranda em inovação pela UFMG e uma das fundadoras da startup, juntamente com as engenheiras de materiais Ana Elisa Antunes e Alana Benzo e duas pesquisadoras do Cefet-MG, Aline Bruna da Silva e Roberta Viana. “Decidimos focar nosso negócio no mercado de carne in vitro, no qual temos poucos concorrentes diretos”, ressalta Viana, diretora comercial do negócio. Mosa Meat e Aleph Farms já desenvolvem seus próprios scaffolds.

A fim de estimular a agricultura celular — campo em que se insere o desenvolvimento de carne cultivada em laboratório –, foi criada nos Estados Unidos em 2016 a Sociedade de Agricultura Celular (CAS). “Em todo o mundo, apenas a América Latina ainda não desenvolveu projetos de carne in vitro”, diz Matheus Saueressig, aluno de ciências da computação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor de Comunicações da CAS na América do Sul. “O Brasil é o maior processador de proteína animal do mundo e corre o risco de perder esse novo mercado”, alerta.

Startups dedicadas à pesquisa e à fabricação de carne limpa, segundo Saueressig, vêm recebendo investimentos de empresas de capital de risco, de bilionários, como Richard Branson e Bill Gates, que têm participação na Memphis Meat, com sede na Califórnia, e de multinacionais do setor alimentício, entre elas Cargill, Bell Food Group e Tyson Foods. Ao apoiar os novos fabricantes de carne limpa, os grandes processadores de carne bovina querem colocar um pé nesse mercado para não ficarem de fora caso o negócio dê certo.

Por enquanto, as alternativas vegetais dominam o promissor mercado de possibilidades à carne bovina. Um estudo da consultoria Nielsen revelou que os norte-americanos gastaram US$ 670 milhões em produtos de origem vegetal similares à carne no primeiro semestre de 2018 – veganos e vegetarianos representam apenas 5% da população do país. Negócios dedicados à produção de carnes baseadas em células-tronco miram um mercado bem maior. A carne bovina deverá ser responsável por uma receita de US$ 2,1 trilhões em todo o mundo até 2020, conforme a consultoria norte-americana Grand View Research.

Desafios à vista

Apesar das boas perspectivas, já há reações. O termo “carne limpa”, por exemplo, é contestado tanto por veganos quanto por pecuaristas. Os primeiros são contra o uso do adjetivo “limpa” quando há qualquer tipo de uso de células extraídas de animais, enquanto a indústria de proteínas animais se opõe ao emprego da palavra “carne” por temer a concorrência. A Associação de Pecuaristas dos Estados Unidos pleiteou ao Departamento de Agricultura que produtos não derivados de animais criados ou abatidos sejam impedidos de ser descritos como bife ou carne – com isso, querem diferenciar o alimento que produzem da novidade que está entrando no mercado.

Um dos maiores desafios das novas empresas não é comercial, mas científico: elas precisam garantir que o processo de produção não faça uso de nenhum componente de origem animal. No primeiro hambúrguer in vitro, Mark Post usou soro bovino fetal para nutrir as células-tronco. Hoje, tanto a Mosa Meat quanto a Aleph Farms garantem que não utilizam mais ingredientes derivados de animal. Para o médico veterinário Flávio Vieira Meirelles, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo (FZEA-USP), no entanto, é muito difícil substituir aminoácidos, proteínas, açúcares, vitaminas e fatores de crescimento encontrados no sangue animal por substâncias isoladas de plantas.

“Existem alternativas ao soro fetal, mas também têm origem animal. E há várias outras substâncias retiradas de animais envolvidas nas diferentes etapas do processo”, avalia. “Deve levar tempo até que se consiga fazer cultivo celular em escala industrial com um custo viável que seja completamente livre de produtos de animais.” Algumas foodtechs, como as norte-americanas Just e Memphis Meats, investem para produzir carne em laboratório sem fazer nem mesmo uma simples biópsia no animal. Essas empresas usam células-tronco coletadas de penas do animal para produzir carne de frango. A Just comercializa alimentos vegetais alternativos aos de origem animal, como maionese. A Memphis Meats, por sua vez, dedica-se à pesquisa de diversos tipos de carne em laboratório, incluindo frango e pato.

Mesma textura

Liz Specht, diretora associada de Ciência e Tecnologia do GFI nos Estados Unidos, provou a carne de pato – feita a partir de células-tronco – da Memphis Meat, em 2017. “O que mais me impressionou foi a textura. Quando você morde fibras musculares, percebe uma elasticidade própria, e a carne baseada em células que comi tinha a mesma qualidade”, contou ela logo depois da experiência, segundo informou a própria GFI. “A carne estava empanada e tinha um molho. Por isso, foi um pouco difícil avaliar o sabor dela em si, mas a textura era inconfundível.”

Outro desafio dos fabricantes de carne in vitro é provar que o produto seja seguro ao consumo humano. “Eles terão de identificar claramente quais as substâncias são empregadas no processo de diferenciação celular, comprovando a segurança e a qualidade nutricional”, pondera a bioquímica Viviane Abreu Nunes Cerqueira Dantas, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
A pesquisadora vê com desconfiança a alegação, comum entre as startups do setor, de que a carne de laboratório, ao contrário do produto oriundo de abate, dispensa o uso de antibióticos.

“Em um primeiro momento, a produção de carne in vitro, em grande escala, não poderá prescindir do uso de antibióticos para o cultivo das células. Desconheço, entretanto, quais outras substâncias estariam sendo usadas com esse mesmo efeito no contexto da produção da carne de laboratório”, avalia. Segundo Dantas, os produtos cárneos, particularmente aqueles que passam por maior manipulação, constituem um excelente meio de cultura de microrganismos devido à elevada umidade, ao pH próximo da neutralidade e à composição rica em nutrientes.

Felipe Krelling, da GFI, informa que antibióticos podem ser utilizados por um período curto para minimizar riscos de contaminação ao separar uma linha celular de uma biópsia, caso ela esteja contaminada por alguma bactéria. “Não há nenhuma necessidade de se utilizar antibióticos em qualquer outro processo de produção. Já existe tecnologia na indústria de bioprocessos que pode ser adotada por empresas cell-based para se obter um ambiente livre de antibiótico para a proliferação de células”, declara Krelling.


Artigo científico
LYNCH, J. e PIERREHUMBERT, R. Climate impacts of cultured meat and beef cattle. Frontiers in Sustainable Food Systems. 19 fev. 2019.
O site da revista Pesquisa FAPESP traz uma versão ampliada desta reportagem.

Em resumo

Edições anteriores

Notas de Conjuntura: 3 de novembro de 2024

Nas Notas de Conjuntura, destaque para expectativas sobre as...

Um dia no futuro: a neurotecnologia cria boas notícias

Arnoldo, nascido em 2010, com uma doença neurológica debilitante,...

Centros de Pesquisa em Inteligência Artificial pretendem impulsionar aplicações da tecnologia no país

Localizadas em diferentes regiões do Brasil, unidades serão voltadas...

Quatro mitos sobre o futuro da agricultura urbana

Futuro da Alimentação: Quatro Mitos Sobre a Agricultura Vertical...

Notas de Conjuntura: 18 de outubro de 2024

Nas Notas de Conjuntura, destaque para eleições, prioridades de...
Verified by MonsterInsights