Carlos Teixeira
Jornalista – Radar do Futuro
A regulamentação do uso de computadores como intermediários da relação entre médicos e pacientes, apresentada em fevereiro pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), marca o momento em que a tecnologia se incorpora definitivamente à prática e ao cotidiano dos profissionais. A telemedicina não chega a ser novidade. O que há de novo é a tendência de crescimento exponencial do uso das tecnologias digitais. Independente de alguma resistência demonstrada por parte da comunidade médica, a telemedicina vai avançar no sistema brasileiro de saúde a partir de maio, quando as regras passam a valer definitivamente.
O “exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde”, de acordo com a definição da resolução, existe há décadas. O que causa impacto no momento foi a teleconsulta, a possibilidade de realizar o atendimento por sistemas de mensagens com imagens via internet. O que é visto como possibilidade concreta de substituição do trabalho do profissional em algum momento.
A consulta a distância é, então, a razão principal para a regulamentação determinada pelo CFM ter sido rejeitada pela categoria, com apoio dos conselhos regionais. A rejeição chegou a ser agressiva em mídias sociais, lembrando o comportamento de eleitores durante a campanha para presidente no ano passado. No Twitter, médicos acusaram o CFM de traidor da categoria, utilizando a hashtag #vergonhacfm.
Cirurgião plástico em Belo Horizonte, Bruno Sander reconhece que a maioria dos médicos recebeu a divulgação da novidade com preocupação. “É necessário entender os impactos da decisão. O contato entre médicos e seus pacientes é parte essencial da atividade desde os primórdios”, reforça o especialista. Ele reconhece, entretanto, que os avanços tecnológicos são importantes. É natural, por exemplo, que um cliente tire dúvidas pelo celular, como já vem acontecendo.
Expectativas positivas
Os defensores da consulta a distância assinalam que a regra definida pelo conselho federal impõe uma relação prévia entre médico e paciente. O contato inicial tem de ser pessoal. E mesmo os atendimentos posteriores devem ter um profissional da área de saúde como intermediário. A exceção existe apenas para os casos em que envolvam o atendimento a pessoas que vivam em áreas remotas do País.
Antônio Carlos Endrigo, diretor de Tecnologia da Informação da Associação Paulista de Medicina (APM) acredita que a resolução do CFM traz avanços importantes para o atendimento em saúde ao legitimar soluções tecnológicas já fartamente utilizadas na Europa, Estados Unidos e até nações da África. “As normativas até então em vigor eram muito tímidas, atrasadas e mantinham o País à margem do desenvolvimento da telemedicina”, avalia Endrigo.
As projeções dos otimistas levam em conta a possibilidade de impactos positivos. Inclusive com a possibilidade levantada pelo diretor da APM de que seja possibilitada a “integralidade do Sistema Único de Saúde (SUS) para milhões de cidadãos”. Endrigo acredita que “o apoio das tecnologias viabilizaria a integração entre muitos pacientes que não conseguem atendimento, por conta de barreiras geográficas, e muitos médicos disponíveis, à espera de pacientes”.
Enquanto parte da categoria expressa preocupação nas redes sociais em relação às consultas on line, Endrigo defende a tese de que os avanços poderiam ser maiores. No centro da questão está a consulta prévia presencial que, para ele, poderia ser dispensada em casos de consultas simples, seguindo exemplos da Europa, onde 24 dos 28 países do Mercado Comum também possuem legislação sobre teleconsulta. Destes, 17 permitem a consulta remota de forma plena e apenas três com restrições.
Descentralização do atendimento
Naturalmente interessados, os fornecedores de serviços de telemedicina apostam nas promessas de melhora do sistema de saúde brasileiro. “Se bem aplicado e, principalmente, adotado pelo governo, as novas diretrizes da telemedicina trarão resultados imediatos na redução de filas em hospitais e na maior amplitude do atendimento em localidades mais isoladas ou para aquelas sem capacidade de investimentos em saúde”, avalia Alexandre Pimentel, diretor da Telecárdio, primeira empresa brasileira de telemedicina.
Caso a implantação de sistemas seja concretizada, o crescimento do uso das inovações de atendimento pela internet pode ultrapassar a média de 20% ao ano até o final de 2020, de acordo com projeções de Pimentel. “Isso porque nossa demanda por médicos e a pouca capacidade de investimentos em saúde são doenças para as quais a telemedicina pode contribuir, e muito, na cura”, diz.
O otimismo do executivo contrasta com as preocupações do médico Luiz Viana, integrante do Observatório da Medicina, laboratório vinculado à Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), da Fiocruz. Em artigo publicado no site da instituição, ele avalia “a questão principal do enredo é a teleconsulta. E para entender toda a trama dessa telenovela, temos de atentar para o que foi dito sobre o mercado. O que está se discutindo, por enquanto, não é segurança do paciente, segurança da informação do paciente, relação médico-paciente, qualidade ou acurácia do diagnóstico… o que incomoda é a consulta a distância. Aquela que poderá ser distribuída por grandes corporações como um serviço em série, se tornar uma commodity.”
O medo é de que a vulgarização da oferta de consultas on-line a baixo preço poderá desvirtuar totalmente qualquer projeto de assistência integral do SUS. Cético, Viana imagina que não tardará para o mercado ter grandes “call-health-centers”, vinculados ou não aos planos de saúde, ou talvez diretamente à Amazon, ao Peixe-Urbano ou afins. Mesmo representantes do CFM confessam que estamos num mercado sem controle. Aliás, por sinal, na China uma empresa lançou recentemente um sistema em que o paciente entra em uma estrutura de 3 metros quadrados para ter acesso a atendimento virtual.
Sem retorno
O exercício da medicina mediado por tecnologias será irreversível. O interesse de hospitais, planos de saúde e fornecedores, entre outros integrantes do ecossistema do mercado de saúde, tende a prevalecer em decisões de interesse público. E privado, claro. Luiz Viana assinala, no artigo do Observatório Médico, que um hospital de Fortaleza, no Ceará, diminuiu o número de cardiologistas no plantão noturno de sua unidade de atendimento de emergência, pois contratou os serviços de Teleinterconsulta (auxílio médico a médico) do Hospital TotalCor, de São Paulo.
Não houve irregularidade, o médico e pesquisador reconhece. Mas há sinais de que o debate ético deve ser priorizado. Ele tem razão em demonstrar preocupação. A perspectiva de cortes de investimentos públicos em saúde, de empobrecimento da população diante do baixo crescimento econômico do País e da crise do próprio setor, em que os planos de saúde perderam 3 milhões de clientes em três anos, estimulam o uso da medicina a distância.
A tendência de adesão indiscriminada às “magias tecnológicas” é fortalecido ainda mais pelos avanços das inovações, como inteligência artificial, internet das coisas, automação e robotização. A medicina entra nos anos 2020 com a perspectiva de informatização ampla. E os médicos precisarão se preparar e se organizar para adaptar a novos rumos do mercado.
Em resumo