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Coisa pública e coisa nossa: por que conhecer o passado para entender o futuro

Capa do livro A memória do Guardião - de Juremir Machado da Silva

Resenha: livro do historiador Juremir Machado é revelador sobre como as relações se estabelecem no Brasil

Jorge Ferreira
Revista Fapesp

A vida política brasileira é conhecida pela máxima “é dando que se recebe”, sendo o sigilo a regra de ouro. É nesse sentido que o livro de Juremir Machado da Silva surpreende o leitor. Nas páginas de A memória e o guardião (em comunicação com o ,presidente da República: relação, influências, reciprocidade e conspiração no governo João Goulart), publicado pela Civilização Brasileira, é espantoso ler cartas com pedidos ao presidente Goulart (1919-1976), a maioria delas redigidas sem rodeios.

O livro é contundente ao demonstrar a falta de valores republicanos no país. A res publica (coisa pública) surge como cosa nostra (coisa nossa). Mas como Juremir teve acesso à documentação tão valiosa? Wamba Guimarães, funcionário público dedicado e de confiança, era responsável por toda a correspondência que chegava ao presidente. Com o golpe de 1964, ele reuniu toda a documentação – cartas, telegramas, cartões de Natal, entre outros – em duas malas. Goulart pediu para que ele guardasse tudo e não revelasse a ninguém.

Durante as cinco décadas seguintes, Wamba foi guardião das malas que continham 927 documentos. Em 2003 ele faleceu. Segundo Juremir Machado da Silva, um neto de Wamba o procurou e deu informações sobre as malas. Um amigo de Juremir adquiriu os documentos, viabilizando a pesquisa.

O que o autor nos relata, com base na documentação, é de estarrecer. Com razão, ele afirma que Goulart “parece cercado por uma matilha voraz de pedintes”. Segundo Juremir, “todos pedem. Incansavelmente”. Jango recebia pedidos de deputados, senadores, governadores, sargentos, generais, prefeitos, trabalhadores, desempregados, membros do clero, estudantes, artistas, entre outros. Todos pedem, “de todos os lugares, de todas as regiões, de todos os quadrantes, a qualquer hora, todo o tempo”. Fica a impressão de que a atividade mais importante do presidente era a de atender pedidos.

A começar por trabalhadores. Jango recebia solicitações de empregos, transferências, financiamento para transporte, ajuda para famílias numerosas. Nada muito diferente dos pedidos que Getúlio Vargas (1882-1954) recebia. Quando vinha de governadores, senadores, deputados federais e estaduais, militares e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a maioria dos pedidos era de indicação para cargos no serviço público para um amigo, parente, afilhado político ou para si próprio. As cartas eram assinadas pelo autor, sem nenhum temor – ou pudor.

Nepotismo era palavra desconhecida. Políticos e militares indicavam filhos para cargos públicos. Coronéis e generais também pediam liberação de empréstimos na Caixa Econômica Federal para comprar imóveis. “Pedir favores não era visto como corrupção”, avalia Juremir.

O Banco do Brasil era um gigantesco cabide de empregos. Causa espanto saber que governadores, senadores ou deputados solicitavam nomeações para cargos no quinto escalão. O pedido de nomeação de um contínuo ou um porteiro em longínqua cidade do interior tinha o aval presidencial.  Quando eu escrevi a biografia de Jango, sabia da existência dessas práticas, mas não poderia imaginar sua grandeza e extensão.

Goulart passava grande parte de seu tempo lendo cartas. Sempre que possível, atendia os pedidos. Juremir afirma que Jango conhecia a política brasileira e negar o pedido era ganhar um inimigo. Ele aceitava as regras do jogo, tentando, evidentemente, ganhar. Não ganhou. Muitos governadores, senadores, deputados e generais que fizeram pedidos a Jango – e foram atendidos – apoiaram o golpe de Estado em 1964.

Há muitos outros temas no livro, revelando relações políticas baseadas na influência, na reciprocidade e na lógica do “é dando que se recebe”. Juremir nos deixa, inclusive, uma provocação: tanto o sistema dominante quanto a parte mais desfavorecida da população não esperavam que Jango mudasse o Brasil, mas que atendesse seus pedidos pessoais.

O livro vale a leitura. Mas fica uma sugestão ao autor. Que a rica documentação seja doada a um arquivo público, permitindo que outros pesquisadores tenham acesso e novas reflexões colaborem para compreender a maneira de fazer política no Brasil.


  • Jorge Ferreira é professor dos programas de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autor de João Goulart: Uma biografia (Civilização Brasileira, 2011).
  • Fonte: Revista Fapesp

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