A lógica do tecnofeudalismo em ascensão contínua sobre nossas vidas

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O pesquisador Cédric Durand identifica, na economia digital, uma reconfiguração das relações sociais. A mudança se manifesta por meio do ressurgimento da figura da dependência

Instituto Humanistas Unisinos

Todos as esperavam e previam como um Messias restaurador e, ao final, surgiu um monstro. Na realidade, vivemos em um feudalismo próprio aos tempos modernos, muito distante da liberdade e a equidade prometidas pelas novas tecnologias. Sob o manto de uma retórica de progresso e inovação, esconde-se o mais puro e antigo açoite da dominação. As novas tecnologias são completamente o contrário do que prometem.

Essa é a tese de um brilhante ensaio publicado pelo pesquisador Cédric Durand: “Tecnofeudalismo: crítica da economia digital” (Technoféodalisme: Critique de l’économie numérique). Durand demonstra como, ao contrário do que circula nos meios de comunicação, com as novas tecnologias, em vez de se civilizar, o capitalismo se renovou regredindo. Instalou-se no medieval com as ferramentas da modernidade. Não deu e nem nos fez dar um salto para o futuro, mas retrocedeu e, com isso, ressuscitou as formas mais cruéis da dominação e a submissão.

O mito do Vale do Silício se derrete diante de nós: acumulação escandalosa de lucros, tecnoditadores, desigualdades sociais incabíveis, desemprego crônico, milhões de pobres adicionais e um punhado de tecno-oligarcas que acumulam fortunas jamais vistas. A tão badalada “nova economia” deu lugar a uma economia da dominação e desigualdade.

A tese do livro de Cédric Durand é uma viagem na contramão, uma desconstrução dos mitos tecnológicos: a digitalização do mundo não conduziu ao progresso humano, mas a uma gigantesca regressão em todos os âmbitos: restauração dos monopólios, dependência, manipulação política, privilégios e uma tarefa de predação global são a identidade verdadeira da nova economia.

Economista, professor na Sorbonne, Durand é um especialista da organização da econômica mundial e da dinâmica do capitalismo: empresas multinacionais, deslocalizações, globalização, cadeias mundiais de produção. Com este ensaio, sua análise irrompe no terreno de um mito tecnológico que nos consome e adestra todos os dias. Conforme demonstra nesta entrevista realizada em Paris, resta ao mito da nova economia poucas asas para continuar voando. Sua verdadeira face está aqui.

A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 24-01-2020. A tradução é do Cepat.

Submersa em mitos, manipulações, egoísmos e sonhos de progresso humano, quais são as verdadeiras molas da economia digital?

Possui várias dimensões. Primeiro houve o que se chamou de “a nova economia digital”, cuja ideia geral consistia em que seriam aplicadas novas regras ao funcionamento da economia, graças ao estímulo das tecnologias da informação e comunicação. A partir de 1990, esta ideia acompanhou a renovação do neoliberalismo: inovação, empreendimento e proteção da propriedade intelectual foram as ideias portadoras. Dizia-se que graças às tecnologias da informação e da comunicação, como em toda a esfera digital, haveria muitos custos que seriam anulados e disto surgiria uma nova era de prosperidade. Ocorreu completamente o contrário.

Na realidade, foi um conto que congelou a prosperidade coletiva.

Reconheço, é claro, que com o surgimento dos suportes digitais houve algo novo, mas, sobretudo, o que tento demonstrar é que, ao contrário do que se anunciou, não vimos um horizonte radiante do capitalismo, mas muito pelo contrário, uma degradação do capitalismo. A economia política digital consiste em admitir, ao mesmo tempo, o salto tecnológico e as mudanças institucionais que o acompanharam, que se resume principalmente em um: o endurecimento do neoliberalismo. O resultado de tudo isto é que não assistimos a uma nova prosperidade do capitalismo candente, mas, muito pelo contrário, a um capitalismo em processo de regressão.

Outra das perversões escondidas nessa nova economia é o aumento das injustiças nas relações sociais e, por conseguinte, uma mudança de perspectiva nessas relações. Você definiu as duas tendências como a instauração de um “tecnofeudalismo”, de uma economia digital feudal.

Sim, efetivamente. Em meu livro, demonstro que está em jogo dentro da economia digital uma reconfiguração das relações sociais. Esta reconfiguração se manifesta por meio do ressurgimento da figura da dependência, que era uma figura central no mundo feudal. A ideia da dependência remete ao princípio de que existe uma forma de adesão dos seres humanos a um recurso.

No seio do mercado, havia uma monopolização, por parte do capitalismo, dos meios de produção, mas estes meios eram plurais. Os trabalhadores precisavam encontrar emprego e, de certo modo, podiam escolher o posto de trabalho. Existia uma forma de circulação que dava lugar à concorrência. Nesta economia digital, neste tecnofeudalismo, os indivíduos e também as empresas aderem às plataformas digitais que centralizam uma série de elementos que lhes são indispensáveis para existir economicamente na sociedade contemporânea. Trata-se do Big Data, das bases de dados, dos algoritmos que permitem os processos.

Aqui, estamos diante de um processo que se autorreforça: quanto mais participamos na vida dessas plataformas, quanto mais serviços indispensáveis oferecem, mais se acentua a dependência. Esta situação é muito importante porque mata a ideia de competição. Esta dominação prende os indivíduos a este transplante digital. Tal tipo de relação de dependência tem uma consequência: a estratégia das plataformas que controlam esses territórios digitais é uma estratégia de desenvolvimento econômico por meio da predação, por meio da conquista.

Trata-se de conquistar mais dados e espaços digitais. E adquirir mais e mais espaços digitais significa ter acesso a novas fontes de dados. Entramos, aqui, em uma espécie de competição onde, ao contrário de antes, não se busca produzir com maior eficácia, mas conquistar mais espaços. Este tipo de conquista é semelhante ao feudalismo, ou seja, a competição entre Senhores, que não se manifestava na melhoria das condições, mas na luta pela conquista. Os dois elementos, ou seja, a dependência e a conquista de territórios, nos aproximam da lógica do feudalismo.

É uma lógica reatualizada por meio de suportes ultramodernos: algoritmos e predação feudal.

Efetivamente. O ponto decisivo da economia digital está em que evolui em ritmo lento. Ao contrário da lógica produtiva própria ao capitalismo, em que os capitalistas eram obrigados a investir para enfrentar a concorrência, aqui, na economia digital, paradoxalmente, ao se apoiar na lógica da predação, realiza-se uma espécie de inovação muito orientada para a conquista de dados e não para a produção efetiva.

A estagnação que caracteriza o capitalismo contemporâneo, ou seja, desemprego endêmico, retrocesso do crescimento, salários ruins, em suma, todas estas falhas econômicas estão associadas a um comportamento dentro do qual a predação se sobrepõe à produção.

Você zomba dessa ideia promovida nos meios de comunicação de que a economia digital é a expressão mais acabada de uma economia civilizada. Muito pelo contrário, é um retrocesso brutal.

Assistimos a uma regressão, a um retrocesso socioeconômico. Em vez de passar a uma forma mais civilizada, mais elaborada, mais apropriada à felicidade humana, os suportes digitais nos levam a um retorno a formas arcaicas, que acreditávamos terem sido superadas na modernidade.

Em sua obra, você aponta a substituição que ocorreu para que este arcaísmo domine tudo. Esta economia digital substituiu o consenso de Washington pelo que você chama de consenso do Vale do Silício. No entanto, essa substituição não mudou nada, pois funciona de acordo com as mesmas exigências: reformas, precarização do trabalho, o mercado, a financeirização da economia. Assim como antes!

O consenso do Vale do Silício acrescenta ao consenso de Washington uma camada adicional. A grande racionalidade do consenso de Washington consistiu em dizer que a planificação não funcionava mais porque a União Soviética fracassou. Por conseguinte, é necessário liberar os mercados. O consenso do Vale do Silício começa a ser elaborado nos anos 1990 e se cristaliza nos anos 2000, quando o neoliberalismo estava em dificuldade. A década dos anos 1990 foi uma década de crise financeira. Foi dito, então, que afirmar que o mercado funcionava espontaneamente não era suficiente.

A camada acrescentada pelo consenso do Vale do Silício consiste em anunciar que é preciso estimular os inovadores, que é necessário apoiar os empreendedores. E para isto é preciso deixar que os mercados funcionem com maior liberdade e, ao mesmo tempo, proteger os interesses dos inovadores e dos criadores de empresas. Imediatamente, foram adotadas medidas muito duras para proteger os lucros do capital, sempre com essa lógica: proteger e estimular para favorecer a inovação.

Tudo isto foi plasmado com um caldo de ideias oriundas dos anos 1970 e, depois, misturas com muito oportunismo para desembocar no que você define como um mundo do qual não podemos escapar.

Houve, para começar, uma reapropriação da ideologia californiana, uma ideologia em prol da técnica e do individual. Essa ideologia da Califórnia facilitou a retórica que depois respaldará os delineamentos do consenso do Vale do Silício. E no que concerne a este mundo que nos encerra, bom, é o mundo onde impera o Big Data, que acaba nos conhecendo melhor do que nós mesmos. A lógica da vigilância transcendendo aos indivíduos e nela há como um caminho sem saída.

Não podemos escapar desse mundo porque, individualmente, somos mais frágeis que os algoritmos. Somos dominados e guiados por eles. Não há uma solução individual para a proteção dos indivíduos diante dos suportes digitais. Ao contrário, é preciso refletir sobre o modo como, coletivamente, podemos nos emancipar deles preservando espaços da existência que não estejam totalmente dominados por este sistema. É uma discussão política e não tecnológica.

Tudo é exatamente o contrário neste universo digital. O moderno se veste de feudal. Até a aparente horizontalidade se torna um abismo vertical onde reina a desigualdade e a injustiça social e a tão promovida iniciativa pessoal de torna um monopólio espantoso.

O que observamos é que estamos em um momento de remonopolização. Enfim, o suporte digital deveria reduzir os custos e, por conseguinte, facilitar a competição, mas ocorreu o contrário. Viu-se um movimento de monopolização muito poderoso. As plataformas controlam tudo e quando algo está fora de seu controle compram as empresas que competem com elas. Monopolizam tudo. Este fenômeno de concentração faz com que as estruturas econômicas se endureçam, sejam mais rígidas em vez de arejá-las, conforme era a promessa inicial.

Isto acarreta consequências muito importantes no campo das desigualdades econômicas. As grandes cidadelas digitais são capazes de concentrar volumes de lucros consideráveis. Esses lucros são redistribuídos primeiro entre os acionistas e, depois, para um grupo de empregados. O que vemos nesta economia digital modelada pelo neoliberalismo é um aumento das desigualdades. Longe de ser um mundo de oportunidades é um mundo onde, finalmente, as polarizações se acentuaram.

O roubo de dados, a espionagem e o posterior processamento pelos algoritmos já é algo mais do que comprovado. Você acrescenta uma ideia a esta espoliação planetária: ao extrair nossos dados, estão capturando a nossa potência social.

A tendência é pensar que as empresas pegam nossos dados pessoais, individualmente. No entanto, nossos dados pessoais, como tais, isolados, não possuem valor e utilidade. Ao contrário, esses dados são úteis e se tornam uma força quando comparados aos dados de outros. Nessa comparação, nesse cruzamento de dados, aparecem traços que fazem de nós seres humanos em sociedade. Como indivíduos, somos governos por regras semelhantes.

Por fim, o que o Big Data faz é revelar essa potência social. Essa potência é inacessível individualmente para nós, mas se torna visível quando é possível observar e comparar o conjunto dos comportamentos dos indivíduos. O Big Data revela outras coisas que vão além dos que cada um de nós é capaz de ver, e que nos é restituída sob a forma de perfis por meio dos quais os comportamentos são modificados.

Assim, o Google ou a Netflix podem nos guiar segundo as nossas tendências. Mas, ao fazer isso, o que estão fazendo é reenviar algo que aprenderam do conjunto da comunidade. Precisamente, essa capacidade para remeter, reenviar para nós as informações da comunidade dos indivíduos é a que está na base do princípio de dependência que evoquei há pouco.

Estamos no coração do que você conceituou como “a renda do intangível”.

A renda do intangível significa que se somos capazes de controlar esses elementos, também podemos obter lucros econômicos, independentemente do esforço produtivo que se tenha realizado. É a própria definição da renda, ou seja, obter lucros sem esforços produtivos. Os intangíveis são os ativos como as bases de dados, as marcas, os métodos de organização, ou seja, tudo o que se pode repetir ao infinito sem custos. O tangível, por exemplo, são as ferramentas, as máquinas, etc. As produções de hoje são uma mistura de tangível e intangível.

No entanto, se separamos os proprietários do tangível dos proprietários do intangível, vemos, em seguida, que quanto mais aumenta a produção, mais os lucros do intangível está desconectado do tangível. Os proprietários do intangível fazem um esforço inicial, mas, depois, seus lucros aumentam de forma independente e sem esforço adicional. Ao contrário, os proprietários do tangível precisam continuar fazendo esforços. Na economia digital, a acumulação dos lucros favorece os intangíveis.

Matéria publicada originalmente em IHU

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