Acreditamos que a evolução da civilização veria a redução da influência das religiões. Erramos, avalia o pesquisador Bruno Paes Manso.
Bruno Paes Manso
Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP
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A onda conservadora e fundamentalista, no Brasil e no mundo, de alguma maneira, aponta para uma crise preocupante de legitimidade do Estado moderno e democrático
Algumas décadas atrás, em um passado recente, muitos pensadores apostavam que o mundo seguiria uma trajetória cada vez mais secular, com menos espaço para a religião nos rumos da humanidade. Mas a história, quem diria, testemunhou um plot-twist: na atualidade, as autoridades de países democráticos resgataram símbolos sagrados para fortalecer sua capacidade de exercer a liderança política.
Levou um susto quem imaginava que a imagem do “direito divino dos reis” repousava nas páginas dos livros sobre a Idade Média. A ideia ganhou nova roupagem e hoje veste terno e gravata, nas figuras de presidentes ungidos por Deus, como Donaldo Trump e Jair Bolsonaro, vistos por muitos eleitores como representantes da vontade divina na Terra.
A onda conservadora e fundamentalista, no Brasil e no mundo, de alguma maneira, aponta para uma crise preocupante de legitimidade do Estado moderno e democrático. É como se muitos parassem de acreditar em suas promessas civilizatórias e em sua capacidade de manter a ordem no mundo. Para não se perderem, como boia de salvação, eles acabaram se agarrando nas instituições tradicionais, que existem há milênios, como família, mercado, propriedade privada e religião.
A vida em sociedade, assim como um jogo, depende de regras para funcionar. Se não fossem as regras, o jogo e a vida correriam o risco de perderem o sentido, já que seus participantes ficariam desorientados, sem saber sequer seus objetivos e razões para agir. Por isso a fragilização da estrutura normativa de uma sociedade é facilmente associada ao terror. É um dos nossos medos mais profundos. A desordem impede a vida em sociedade porque a esvazia de sentido. Os grandes tiranos costumam se fortalecer quando o caos está à espreita. Eles se vendem como solução para evitar a ameaça, identificam bodes expiatórios a serem dizimados e assim forjam sua autoridade.
Nas cidades brasileiras, o surgimento de justiceiros, grupos de extermínio, esquadrões da morte, milícias, a violência policial e até mesmo das facções, surgiram como forma de lidar com a ameaça de desordem. Receberam apoio popular e nunca deixaram de existir porque são associadas à produção de obediência em uma sociedade sem regras. A violência pode ser vista como positiva desde que voltada para evitar ou interromper o caos, usada como instrumento de produção de ordem. Muitos preferem conviver em um bairro governado pelas regras previsíveis de assassinos brutais do que se sentirem permanentemente ameaçados pela imprevisibilidade dos roubos. Enquanto o assassino mata bodes expiatórios, como os “bandidos”, causando alívio entre os que estão com medo, os roubos são aleatórios e viver sob a ameaça dos ladrões torna a vida insuportável.
A segunda eleição de Trump, a popularidade do bolsonarismo, o aparecimento de políticos brutos em todos os cantos do mundo, e até mesmo a força de Peixão, um traficante-pastor que exerce a autoridade em cinco favelas no Complexo de Israel, no Rio de Janeiro, acontecem porque eles são vistos como fiadores de uma ordem que está desmoronando. Estão dispostos a matar e ir para a guerra para garantir a ordem de seus mundos. É melhor garantir a ordem possível do que viver sem conseguir programar as ações cotidianas mais básicas e não poder sonhar com o futuro.
Diante do ceticismo em relação ao Estado moderno, racional e legal, valores como os dos Direitos Humanos, que depois da Segunda Guerra orientaram a formação dos regimes liberais e democráticos, também caíram em descrédito. Seus defensores são acusados de serem tolerantes e condescendentes com as migrações e com o avanço do crime. Ao lutarem pela garantia dos direitos individuais, facilitam a “contaminação cultural” dos ocidentais por credos radicais e favorecem a ação dos bandidos contra os “cidadãos de bem”. Ganham popularidade, por outro lado, os políticos que defendem o fechamento das fronteiras, a construção de muros e de prisões, com penas cada vez mais longas, para tirar do convívio as pessoas diferentes, consideradas ameaças potenciais à ordem vigente, e até mesmo o extermínio dos mais perigosos.
A ordem bolsonarista resgata no Brasil sobretudo os valores da sociedade patriarcal, que sobreviveu em torno do mercado e das famílias, comandada por homens brutos, na base da fé, do fuzil e do empreendedorismo. Renasce com a crise da política e com a crítica à modernidade. Favorece, assim, atividades como o garimpo, a grilagem de terra, o desmatamento, a jogatina e as milícias, todas associadas ao espírito empreendedor e guerreiro de homens em busca de enriquecer para vencer.
Esse empreendedorismo ilegal se beneficia diante das infinitas e irrastreáveis possibilidades financeiras para lavagem do capital do crime. Do outro lado, as regulações ambientais, financeiras, o controle sobre a letalidade policial, o acompanhamento do dinheiro virtual por meio da Receita Federal, entre outras ações esperadas de uma burocracia moderna, são atacadas e demonizadas por sabotarem a disposição desses homens que se sacrificam para vencer.
A ordem do mercado, mesmo ilegal, deve ser preservada para garantir os lucros, enquanto a ordem racional do Estado deve ser obstruída.
Já o tráfico de drogas segue como um inimigo consensual, porque comercializa uma mercadoria que todos temem, associada à loucura e à desordem, à fuga do mundo e da vida em sociedade. Desde que diferentes tipos de drogas passaram a ser amplamente consumidas e celebradas pela cultura urbana e hedonista contemporânea, passaram também a ser vistas como atalho para a anomia. Para lidar com o problema, os políticos declararam guerra contra os traficantes, como se pudessem tirar as substâncias das ruas. Em vez disso, promoveram o terror e a desordem nas favelas e nas cidades. Apesar dos efeitos colaterais perversos dessas medidas irracionais, o debate sobre o tema seguiu interditado, tamanho o medo que desperta. E o dinheiro do tráfico começou a financiar outras atividades ilegais e até formais, entrando na economia e na política.
O tema da ordem e da desordem, nesse sentido, é fundamental para compreender os ânimos políticos atuais, assim como o papel da religião e da violência. Muitas vezes, atiça mais a emoção do que a razão. Numa sociedade em transição profunda, em que estão mudando as formas de trabalho, de família e os papéis de gênero, muitos preferem se agarrar à tradição. A modernidade urbana das grandes cidades, a mistura de povos, a tolerância às diversas orientações sexuais, o protagonismo feminino, tudo passa a ser visto como sinônimo da anomia (ausência de regras), o que deixa todos apavorados. Alguns grupos passam a ser responsabilizados pelo caos, como os comunistas, ateus e feministas, dando nome e sentido para a luta.
Ficam, contudo, diversas perguntas no ar: como resgatar a credibilidade do Estado moderno e das políticas públicas? Vivemos um retrocesso civilizatório e caminharemos ribanceira abaixo? Como resgatar a capacidade de produzir uma ordem racional e coletiva? Religião produz paz ou violência? Eu não tenho resposta para nenhuma dessas perguntas.
Mas para entender a política contemporânea, por mais estranho que possa parecer, temos que voltar aos estudos de religião e de violência.