A mudança geracional de hábitos, costumes e estilos de vida tem sido mais rápida.
Felipe Asensi
Diretor do Instituto Diálogo, Pós-Doutor em Direito e Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Como será o profissional do direito do futuro
A pergunta deste artigo sempre me fascinou. Em minhas aulas e palestras, lido com profissionais do direito de diversas faixas etárias e que iniciaram suas carreiras em diferentes momentos. Porém, algo comum a todos é o fato de não serem “nativos digitais”, ou seja, não nasceram na época do boom tecnológico e tiveram contato posteriormente com o que a tecnologia pode oferecer, se comparados aos que nasceram há menos tempo.
Este fato me leva a crer que a mudança geracional de hábitos, costumes e estilos de vida tem sido mais rápida. A diferença geracional entre os nossos avós e bisavós talvez não tenha sido tão grande, e talvez a diferença deles entre os nossos pais e avós também. Mas algo já vem ocorrendo: muitas pessoas já têm grandes diferenças geracionais em relação a seus pais e, em alguns casos, vemos diferenças geracionais até mesmo entre irmãos. A sociedade tem mudado cada vez mais rápido, e isto certamente trará transformações em como será o profissional do direito no futuro.
Talvez essas sete transformações que apresento demore décadas para acontecer ou talvez nem aconteçam. O meu esforço aqui consiste muito mais em pensar nas transformações possíveis do direito em relação ao direito do presente. Afinal, estou longe de ser vidente, mas essas reflexões nos ajudam a imaginar. Vejamos:
1) Ensino do direito mais dinâmico e baseado em games: atualmente uma das principais inovações pedagógicas no direito tem sido a utilização de estudos de caso. Porém, os estudos de caso como ferramenta pedagógica serão superados. Ao invés de usar casos que permitam ao estudante analisar como surgiram e se resolveram, a utilização de games trará ainda mais interatividade e protagonismo do aluno no estudo. O game permite que sejam traçados objetivos, missões e metas individuais e coletivas que devem ser alcançadas a partir de ferramentas específicas, sendo que os meios para se obter sucesso podem ser diversificados e até mesmo lúdicos. Os games permitem que o estudante pense em alternativas, e não em respostas únicas. Os casos tendem a fechar as alternativas, ao passo que os games tendem a abri-las. Os games ainda podem ser usados em grupos, de modo que o profissional desenvolva habilidades para trabalhar em equipe
2) Doutrinadores estarão mais expostos: atualmente os doutrinadores escrevem livros e artigos e recebem notoriedade por conta da sua produção escrita. No presente, provavelmente o profissional do direito citará diversos doutrinadores e jamais terá assistido a sua palestra e, em muitos casos, visto a sua foto. Escondidos atrás de letras e páginas de livros, os doutrinadores são potencialmente mais usados na medida em que a sua desaparição seja mais efetiva. O desaparecimento reforça a autoridade e o poder simbólico do doutrinador. Porém, com a ampliação dos veículos de comunicação virtuais, sites, redes sociais, etc, será exigido que o doutrinador tenha mais visibilidade e se posicione mais. No futuro, os doutrinadores terão que se preocupar em produzir conteúdos gravados para postar em sites de vídeos, deverão fazer eventos ao vivo por streaming, e deverão se manifestar de maneira mais explícita sobre assuntos polêmicos do direito. O doutrinador deverá produzir bens públicos, isto é, oferecer as suas ideias e argumentos de diversas formas e não necessariamente cobrando por isso. Deste modo, aqueles que se esconderem terão menor importância no futuro e, de tanto se esconderem de forma utilitarista, irão desaparecer
3) Reinvenção do trabalho em equipe dos profissionais do direito: atualmente o trabalho do profissional do direito é contido geograficamente num espaço limitado. Trabalha-se no escritório, na unidade jurisdicional, na promotoria, etc. Esta limitação de espaço faz com que o trabalho do profissional do direito fosse bastante solitário. A princípio, para produzir uma petição, uma sentença ou uma ação civil pública, ele poderá fazê-lo também de maneira solitária ou com a ajuda de subordinados. Porém, no futuro, com a complexidade ainda maior dos problemas jurídicos, o trabalho em equipe será fundamental, e trabalhar em equipe significa trabalhar de forma interdisciplinar. Os escritórios de advocacia não terão apenas advogados, mas, a depender da especialidade, terá contadores, engenheiros, psicólogos, médicos, etc. O mesmo ocorrerá com o Judiciário, a Defensoria Pública, etc. Hoje a instrução de uma ação pertence a uma fase processual, e no futuro a instrução será uma condição exclusivamente pré-processual, inclusive porque as condições para propositura de ações judiciais serão mais rígidas. Enfrentaremos no futuro discussões sobre a legalidade do uso de drones para investigação, a regulação do comércio de células-tronco, e a possibilidade de reconhecimento de personalidade jurídica a robôs. São perguntas cujas respostas não se encontram no trabalho solitário do profissional do direito, mas sim na sua capacidade de integrar equipes e de trabalhar de maneira radicalmente interdisciplinar
4) Preocupação em compreender e resolver problemas globalmente: o atual profissional do direito atua de forma predominantemente individual na efetivação de direitos. Se comparadas com o volume de ações coletivas, as ações individuais são substancialmente mais recorrentes. Ademais, hoje a defesa dos direitos é predominantemente nacional, apesar de se observar cada vez mais problemas jurídicos transnacionais. O profissional do direito do futuro deverá atuar coletivamente também, inclusive lidando com instâncias, associações e organizações que atuam tanto no nível nacional quanto internacional. Problemas como meio-ambiente, saúde, aquecimento, águas, direitos humanos, etc, têm uma enorme vocação de ir além das fronteiras nacionais, exigindo progressivamente dos profissionais do direito uma atuação que seja global e coletiva, e não apenas nacional e individual. Haverá, ainda, problemas espaciais ou galáticos que exigirão novos remédios jurídico
5) Ênfase na prevenção de conflitos: atualmente os conflitos são resolvidos pelos profissionais do direito de maneira “curativa”, isto é, procurando solucioná-los porque eles são anteriores à atuação destes profissionais. Quando ocorre uma quebra contratual ou quando falta medicamento no posto de saúde, a atuação dos profissionais do direito será posterior à ocorrência destes e outros problemas. O tempo do direito – fortemente ancorado em processos judiciais – é sempre posterior à existência do conflito. No futuro, os profissionais do direito deverão investir cada vez mais o seu tempo na prevenção de conflitos. A partir de técnicas já existentes – tais como a mediação – e outras que ainda serão criadas com o uso de tecnologias, a atuação dos profissionais do direito, incluindo os próprios juízes, será fortemente preventiva. Serão criados mais mecanismos e instrumentos jurídicos de responsabilização preventiva por danos, haverá mais atuação extrajudicial, mais “saída de gabinete” e mais diálogo interinstitucional. Com isso, o processo judicial não será mais a primeira ou segunda opção de resolução de conflitos de muitas pessoas, e esta mudança virá pelas próprias instituições jurídicas. Os livros de teoria geral de processo deverão ser reescritos e a especialidade de “processualista” terá que conviver com a especialidade de “consensualista”
6) Negociação será o instrumento do direito: atualmente o profissional do direito toma como centro de sua atuação profissional o processo judicial, que se caracteriza por ser um modelo adversarial de resolução de conflitos. Isto ocorre porque o processo judicial tem que declarar um vencedor e um perdedor, então a decisão que busca resolver o conflito é polarizada. No futuro, em função da complexidade das demandas, os conflitos não poderão ser resolvidos como “sim” e “não”, “lícito” e “ilícito”, etc. O direito será apenas mais um campo do conhecimento que dependerá de outros campos para funcionar, inclusive a robótica, a genética avançada, a telecomunicação hightech, etc. Os conflitos serão resolvidos com gradações, e não em termos binários. Daí a ênfase e importância que terão as técnicas de negociação. A conciliação finalmente deixará de ser um “apêndice” do processo judicial para ser o elemento estruturante do direito. As faculdades de direito terão aulas de relacionamento interpessoal, psicologia organizacional e também neuro-robótica. Esta capacidade de dialogar e formular respostas complexas para problemas complexos fará com que a negociação esteja no centro do campo do direito
7) Tecnologia inteligente no cotidiano processual: hoje a tecnologia já é utilizada no direito e o um dos exemplos mais famosos é o processo judicial eletrônico. Porém, no futuro, a tecnologia não será apenas um instrumento para as instituições jurídicas, mas também a condição de sua existência. As audiências serão realizadas por aplicativos de celulares e tablets, que poderão ser acessados a partir de óculos digitais para comprovação da identidade do postulante. Os profissionais do direito utilizarão a tecnologia em todo e qualquer lugar, inclusive para audiências, despachos, sessões de conciliação, etc. Haverá uma grande transformação nas regras de competência jurisdicional porque os conflitos e atores poderão ser supranacionais, espaciais e talvez com legitimados que não sejam serem humanos. A tecnologia inteligente permitirá a identificação de sensações, emotividade e veracidade, inclusive de animais, de modo que não será mais necessário informar às testemunhas que elas não podem mentir. A tecnologia permitirá ainda que os pensamentos também influam no processo judicial, e não somente a fala ou a expressão corporal. Haverá aplicativos para audiências, para conciliações, para consultorias, para acordos extrajudiciais, etc, que possibilitarão a interação não-presencial de todos aqueles que se façam necessários para a resolução de conflitos, cujo registro será guardado em “nuvens de dados” específicos e criptografados. A assinatura eletrônica ficará na história!
O futuro reserva grandes transformações. Talvez algumas delas ocorram ainda nesta década e outras demorem um pouco mais. Talvez elas sequer ocorram e o caminho do direito siga outras trilhas. Independentemente do que está reservado no futuro, o fato é que os profissionais do direito terão que lidar com três tipos de desafios. Em primeiro lugar, o desafio do relacionamento interpessoal, pois a tecnologia fará com que as interações sejam sem presença física. Em segundo lugar, o desafio da perda de força do Judiciário, que irá conviver com diversas estratégias e mecanismos fortemente plurais de resolução de conflitos e efetivação de direitos. Em terceiro lugar, o desafio do direito que não acompanha a sociedade, que ficará cada vez mais acentuado com o passar do tempo e com as radicais mudanças sociais. Não faltam desafios, mas o que estar por vir irá transformar radicalmente o mundo do direito!